EpÍlogo
*** É dia
30 de Setembro. São 12H00 da manhã. Não de um qualquer dia, sabe-me ao primeiro dia do resto da minha vida. Abro timidamente um olho para espreitar a envolvência. Tudo está calmo. Demasiado calmo.
*** Estou confortavelmente e preguiçosamente deitado na minha cama. Que saudades tinha eu deste meu colchão. Já nem me lembrava de tal. E que saudades tinha eu da minha família. É sempre bom regressar ao aconchego da nossa casa.
*** Nem tudo são rosas, tenho o corpo todo dorido, as pernas parecem-se mais como uns quaisquer troncos milenares, secos e verdes. Já nem sinto o meu traseiro, está dolorosamente assado, nem o milagroso Halibut me valeu! Procuro ver se a minha fiel companheira está, por mero acaso, encostada em qualquer canto, espreitando timidamente, pedindo-me e implorando-me para lhe ser dado algum descanso, mas não a encontro, deve estar também a relaxar, merece-o! Vamos de certeza fazer umas tréguas nos próximos tempos.
*** A memória, já de si volátil e cansada, volta aos poucos e aos soluços. Amigos, acabamos de viver "
A derradeira Aventura", em 13 dias, por este nosso belo Portugal fora. Podemos considerar ser uma aventura de uma vida, assim gosto de pensar, a
SAUDADE tipicamente portuguesa - orgulho-me dela! - dos lugares conquistados já se faz sentir, a saudade dos meus companheiros de viagem também, sinto-me mais vivo e acordado, a olhar agora mais vezes para o chão de que para o céu, para o mundo real. O lema algures lido neste Forum de “
Uma grande aventura começa com uma pequena pedalada” nunca fez tanto sentido para mim do que neste momento.
***Chegamos à Mui Nobre Cidade Invicta, deviam ser umas 4 da manhã. Que aventura a nossa para regressar desde Sagres. Foi de loucos. Nada estava planeado, o improviso dominou, claro, e a sorte, fiel conselheira, acompanhou-nos mais uma vez.
*** Depois do mítico e purificador mergulho nas águas da
Praia da Marreta, sinal divino do final da nossa dura epopeia, era tempo de voltar um pouco à realidade, tínhamos de meter os pés e as burras a caminho, o Terminal de autocarros da Rede Expresso, em
Lagos, esperava por nós. Até certo tempo. E esperava-nos também outra aventura. A do nosso regresso a casa!
*** Até parece que estou a rever o
Pimenta Saca Saca, cansado, nós também estamos, e já de si impaciente, a tentar argumentar e negociar com o estimado Motorista da Rede Expresso, a remota possibilidade de transportar as nossas montadas, pelo menos até Lisboa, o mal seria menor! Estou a reviver a cena ainda agora: “ Se for para falar de transportes de bicicletas, nem vale a pena Amigo, não dá, nem vale a pena perder tempo….”, Diz o profissional atento e conhecedor das regras, respeitamo-lo com certeza. Divago: “ são uma chatice estas regras cada vez mais apertadas sobre o transporte de bicicletas em transportes públicos e afins, mas esta é outra estória”. Resposta impaciente do Pimenta claro mas, diga-se, influenciada pelo cansaço, em abono da verdade: “ Ide lá falar com o Senhor que eu não estou para me chatear, não estou para aturar isto agora….”, Responde o nobre conquistador de Portugal! O
Sr. Engenheiro dá-nos algum ânimo para tentar uma nova investida, ele que tinha vindo até ali de carro com os pais, carregando as nossas cruzes (mochilas) e já se encontrava à nossa espera no Terminal. Não pedalamos como loucos, em contra-relógio, desde Sagres até Lagos e ficar cá apeados, alguém desabafou!
*** Pensamento positivo, a
palavra e o
diálogo têm muita força, estou mais calmo do que meus Amigos, vou tentar outra abordagem, nada está perdido, Uma aventura destas merece ter um final à altura. E aí vou Eu: “Amigo, posso só lhe dar uma palavrinha, pode ser? Nós acabamos de atravessar Portugal em Bicicleta, de Bragança até Sagres, em 13 dias, e somos os três do Porto e um colega de Setúbal, só que tivemos um imprevisto, a nossa boleia para cima falhou-nos, e agora estamos enguiçados para o respetivo transporte das nossas montadas, só precisávamos de ir pelo menos até Lisboa, já era uma grande ajuda, se for preciso desmontá-las, fá-lo-emos claro, assumimos toda a responsabilidade nessa matéria!” O bom e puro coração Lusitano acaba por ceder, não fico surpreendido, reforça a minha admiração pelo bom senso, pela ousadia e pela compreensão do esforço do Outro. “De Bragança a Sagres em bicicleta?!!! Olhem lá, vão colocar as bicicletas na bagageira, sem as rodas, embaraçando o mínimo possível mas, eu não vi nada nem sei da nada, ok?”. Não haverá qualquer incidente nem os Deuses permitiriam tal facto.
*** 4 Humildes Guerreiros,
Pedro “Trilhos”, Pimenta, Sousa e “Sr. Engenheiro” Pedro - agora acompanhados de mais um anónimo, ao volante do Pesado de Passageiros - seguem enfim tranquilamente no seu caminho de regresso às origens. É tempo de alegria, de paz de espírito, da noção exata do cansaço acumulado, de saborear a conquista, de reviver as memórias coletivas e individuais, mas também de tristeza e saudade pelas inevitáveis separações dos caminhos. Parece que foi ontem ainda que nos despedimos do Sr. “Engenheiro” Pedro às portas da Capital, os trilhos e marés vivas de
Setúbal já clamavam pela sua companhia, ficou-nos uma momentânea e sentida sensação de vazio, afinal, as nossas aventuras tinham-se cruzado e encontrado ao sabor do vento, mas esta sensação deu logo lugar a um sentimento de fraternidade e respeito enorme, um bom e leal amigo ficaria agora presente nas páginas das nossas vidas.
*** Terminal de Autocarros, em
Lisboa. Já passam da meia-noite, reforçamos o caloroso agradecimento ao motorista da nobre e solidária boleia - merecida é certo - toca a retirar as "meninas", começa logo outra aventura para as colocar em segurança no autocarro tão desejado, o do destino final, a Invicta. Continuamos bafejados pela sorte e pelo espírito altruísta, o nosso esforço de 13 dias sensibiliza as almas mais austeras, não há grandes entraves ao acondicionamento das companheiras, o autocarro também está com alguma "folga" na bagagem, as meninas serão "desmembradas" novamente mas é um sacrifício exigido!
*** São 4 da manhã. Corpos ensonados e espalmados pelo aperto das cadeiras. Chegamos finalmente à
Mui Nobre e Invicta Cidade. Deu para passar pelas brasas pelo caminho. Mas ainda nos é exigido uma última provação: pedalar até casa. Pelo menos a mim e ao Pedro “Trilhos”, o Pimenta conseguiu ter a sua boleia, uma alma caridosa e com certeza ensonada esperava por ele. Despedidas feitas meio à pressa, não há tempo a perder, os guerreiros seguem o seu caminho. Vitoriosos e honrados. Alcançaremos o nosso objetivo pela calada da noite.
*** Seguir-se-ão relatos e memórias partilhadas no tempo, envoltos em toda a sua simplicidade e realidade, de um belo e fantástico País chamado Portugal, no qual o denominador e mensageiro comum têm por definição:
A VIDA DE UM PURO BETETISTA.
Bem hajam!