lobo solitario
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Dizem que nunca aconteceu. Que foi tudo invenção ou aldrabice do tipo. Que era demasiado fantasioso. Eu, pessoalmente, não sei. Gosto de imaginar que foi realidade. Talvez uma realidade fantástica ou uma fantasia realista. Se calhar, foi tudo construído pela imaginação, uns postais velhos e umas fotografias antigas. Se calhar, aconteceu mesmo. Baseio as minhas descrições no registo de GPS que ele publicitou entre amigos como se precisasse de se comprometer para não desistir à partida. Fui à procura de testemunhas, feito detective privado. Tentei encontrar provas concretas da sua passagem pelos pontos anotados naquele registo. Tentarei ser o mais factual possível e dominar a minha vontade de acreditar. Dividirei a história nos oito dias que acredito terem sido usados para esta viagem.
DIA 1
Levantou-se a queixar-se de umas dores no metacarpo esquerdo que duravam desde o dia anterior. Confessou as suas dúvidas em frente da esposa mas ela nem ligou. Já o conhecia. “Teimoso como é...”. Acertou. Ainda não eram nove da manhã e já ele partia, mochila às costas, pernas ao léu. Dirigiu-se para o mar para se despedir dele. Podia ter seguido os trilhos da costa, que tão bem conhecia mas, talvez por essa mesma razão, resolveu fazer o que outros fazem no início da sua fantasia religiosa. Iria encontrar os peregrinos que iniciavam a sua viagem a São Tiago, de mochila às costas, bordão e concha de invertebrado com penteado reggae. Partilharia da sua fantasia durante uns breves quilómetros antes de abraçar a sua. Aproveitaria para partilhar algumas pontes num espírito comunitário. Seria breve, essa disponibilidade social, que ele não era dado aos rebanhos de gente. Seria um pequeno engano, uma sarcástica brincadeira com a humanidade.
Anotadas à margem do caminho de S. Tiago estavam umas visitas a três pontes sobre o rio Leça: a ponte do Carro, a ponte de D. Goimil e a ponte de Ronfes. De permeio, o caminho desenhado seguia a linha férrea que liga Leixões a Ermesinde. Só depois se entrava no caminho pouco interessante do santo, em direcção ao rio Ave.
Na ponte de D. Zameiro, um grupo ciclante, com ar de peregrinação a S. Tiago, viu-o passar. Um dos moços confessou ter tentado segui-lo mas rapidamente o perderam de vista na subida que se segue à ponte. Daí até ao rio Este não foi visto.
Uma caminhante de mochila às costas e pronúncia estranha confirmou tê-lo cumprimentado junto ao painel explicativo da ponte de S. Miguel dos Arcos e queixou-se de apenas ter recebido um resmungo de uma resposta. Outra senhora, de outra nação mais a Norte, mulher dos seus sessenta e tal anos, disse tê-lo fotografado para fins que não divulgou. Talvez a foto anime algum jantar de senhoras ou apareça numa página do Facebook.
O registo aponta a escolha de uma ecovia feito com base na linha férrea desactivada entre a Póvoa e Famalicão e um desvio, mais à frente, à procura de outras pontes sobre o Este: S. Veríssimo e Coura. Depois é só estrada até Braga.
Consultando os registos meteorológicos desse dia, dei-me conta que a chuva caiu abundante ao redor de Braga, a meio do dia, mas abrandou lá pelos lados de Prado.
Os cépticos irão dizer que, como foi visto pelos vizinhos e alguns melros empoleirados nos castanheiros, ainda não eram três horas da tarde, a colher ervilhas e groselhas, não parece provável que tenha cumprido sequer esta primeira etapa. No entanto, eu acredito que tenha despachado a coisa rapidamente para se dedicar à lavoura.
DIA 2
Um vizinho do nosso personagem atestou que o viu em cima da bicicleta, junto ao campo de jogos de Turiz, de manhã bem cedo. Não nos conseguiu dizer em que direcção rumava. Entre este momento e bem mais tarde não há qualquer registo de um avistamento. Sabemos que os planos incluíam a passagem por Amares, a descida à ponte de Prozelo, a estrada para Monsul e a imersão nos trilhos do monte de S. Mamede.
Poderia referir algumas informações de um grupo de motoqueiros mas parecem-me pouco credíveis pois o monte estava mergulhado nas nuvens. Dão conta da descida suicida de um idoso ciclista nessas encostas. Nas Cerdeirinhas não conseguimos testemunhos. Logo a seguir, uma engenhosa costura de traçados permitia subir à Vaca de onde seguia para a Cabreira. Mesmo apostado em acreditar nas capacidades do homem, penso que ele nunca teria escolhido subir ao talefe mas antes optaria por contorná-lo. Se o fez, poderá ter ficado admirado com o nascimento de um irmão do índio, lá nas pedras da Cabreira, antes da chegada ao Salto.
A ideia de ligar Turiz a Chaves num só dia vinha de há algum tempo atrás. Custa-me crer que tal empreendimento fosse tratado no contexto de uma travessia de vários dias. Não faz sentido. No entanto, a D. Maria do “Borda d’Água”, no Salto, afiança-nos que ele passou por lá. Aliás, detalhou como o cumprimentou e, sentindo a sua mão gelada, a agarrou entre as suas duas mãos e a aqueceu por breves segundos entre as suas. O dia estava nublado e cinzento lá para o cimo do monte. Afirmou-nos que tão cedo chegou, logo arrancou, comida que foi uma pequena sandes de presunto. Devia estar com pressa!
Outro depoimento útil foi o do senhor Indy, um velhote de fraco aspecto mas com um interior ainda funcionante. Chegava ele com a família a uma doçaria famosa, em Carreira da Lebre, a três quilómetros de Boticas, e vê, estacionada em frente do estabelecimento, uma bicicleta que imediatamente reconheceu como sendo a Titânia Vanessa. Sentou-se, aturdido, e esperou que o dono saísse. Surpreendeu o velhote roendo um biscoito de canela conforme saía, depois de pagar os seus consumos. Esta testemunha confidenciou-nos: “Nesse momento achei que deveria começar a acreditar numa força divina!”. Depois de nos confessar alguns dissabores, resultantes de conversas numa tasca que frequenta há anos, tentei recolher mais dados para a minha história. “Sim, disse-me que não subiu ao Barroso dadas as condições climatéricas”. Terá percorrido a estrada Salto-Boticas, presumi. Se o fez, terá, com certeza, encontrado uma linda ponte sobre o rio Beça, a ponte medieval de Pedrinha, com os seus cinco arcos.
Enquanto o senhor Indy me descrevia as mordomias do seu alojamento em Covas do Barroso, ainda me apercebi que terá ficado entusiasmado para se dedicar a travessias. “Talvez um dia ultrapasse “aquele problema” que tive na última tentativa”- confessou-me.
A saída de Boticas levava, finalmente, à junção do traçado ao da verdadeira travessia, a do Dragão, na base do Leiranco. Quem os experimentou, experimenta os trilhos intemporais, o santo Graal do BTT transmontano.
Na albergaria Jaime, em Chaves, obtive confirmação da chegada de um cansado viajante. Disseram-me que vinha exausto mas parecia feliz. No Cândido, o dono disse que comeu bem: uma sopa e feijoada. Pediu arroz extra. Resolvi experimentar o cardápio. A feijoada é sofrível mas deve ter sabido esplendidamente a um exausto viajante. Já o tinto, um carrascão local, lava bem a boca seca e pastosa de quem chega de um dia duro de pedal.
DIA 3
Não há relatos da sua saída de Chaves. Terá admirado as suas pontes? Talvez.
Apenas conseguimos informações concretas de um antigo colega de curso. Disse-nos que tinha combinado encontrar-se com ele ao quilómetro setenta, em Vilar d’Ossos. O que se passou entre Chaves e esse ponto de encontro é desconhecido. O traçado a que tivemos acesso mostra-nos uma subida por estrada seguida de uma saída por uns caminhos inclinados, monte acima, com passagem na ribeira de Sampaio. Achei tolice mas percebi o interesse em ver a pequena ponte, na ribeira. Adivinho o seu desgosto se viu o estado decrépito da estrutura. As heras recobrem-na completamente. As gentes que moram na vizinhança parecem não ter qualquer consideração pelos séculos que já durou. Talvez uma estrutura de betão armado fosse mais apreciada. Um vergonha. Gente bruta!
Terá o traçado seguido, então para a ponte romana de S. Lourenço, uma singela ponte ainda em uso pelas gentes locais, também conhecida como ponte do Arquinho.
Este trajecto é igual ao da Travessia do Dragão e é aqui que se inicia uma etapa bem difícil. Depois de passar o castelo de Monforte, segue-se para a cumeada que bordeja o Mousse e o Mente. A descida é alucinante: longa e muito rápida até ao S. Gonçalo.
Um homem diz-nos ter visto um ciclista parar nesse local nesse dia. Ter-lhe-á perguntado onde seria mais fácil atravessar a vau o rio Mente. Poderia tê-lo feito mais facilmente na ponte, a jusante. Assim, depois de atravessar o rio, seguiu a sua margem em cima de calhau rolado até próximo dessa ponte. A subida a S. Jomil não é das piores mas ajuda a desgastar as energias do dia.
O amigo do nosso protagonista recebeu-nos em sua casa para nos dar o seu testemunho. Casa grande, de espessos muros de pedra, decorada com gosto, móveis de nobres madeiras, estátuas e máscaras africanas. Sete cães no quintal fazem-nos a vida difícil ao entrar. Mesmo assim, os donos não confiam na bicharada e fecham cuidadosamente as portadas das janelas, todas as noites. Diz-nos ele que enviou ao nosso homem várias mensagens por telemóvel de que não recebeu qualquer resposta. Cerca da uma da tarde foi informado que o tipo comia uma sopa ao quilómetro 48. Previa chegar ao ponto de encontro lá pelas três. Apesar das inúmeras tentativas, não conseguiu contacto telefónico. A rede é fraca por aquelas bandas, admitiu. Às 15h00, como combinado, estava em Vilar d’Ossos à sua espera mas ele apenas chegou uma hora mais tarde. “Vinha um pouco afogueado”- disse-nos. Quando quis obter mais detalhes do nosso aventureiro, o amigo descrevia-me as suas aventuras na TransPortugal Race. “Sim, ao início ainda me acompanhava. Sabe, um mexicano colou-se a mim e...”. Rapidamente a conversa versava as suas aventuras. “Decidi levá-lo por caminhos novos, cruzando o Tuela na ponte da Soeira. Soberba."
"Como ia a dizer, o Vítor seguia colado ao americano e depois, disparava...”. Tentei outra vez. “É: ele disse-me que a descida ao Rabaçal foi por um trilho fantástico, inclinado, a pique sobre o rio. Voltando atrás, eu tinha combinado seguir com o Paulo mas numa etapa distanciei-me e ganhei-lhe 45 minutos...”. Numa última tentativa, perguntei como chegaram. “Depois de cruzar o Baceiro, a subida é longa até meia encosta da serra da Nogueira. É muito bonito, com as florestas de carvalho negral. Ele estava aflito. Empurrava frequentemente a bicicleta à mão. Sabe!? Tenho a idade dele mas cada vez estou melhor. Bebo vários litros de leite magro por dia e, como ia a dizer, o mexicano arrancou à chegada de Castelo de Vide e não esperou por mim. O palerma só ganhou 45 segundos”. Virei-me, então, para a esposa do amigo. “Coitado, quando cheguei a casa, ele parecia um zombie. Pus-lhe a roupa de molho em detergente e levámo-lo a jantar. Um restaurante especial. O dono, um tipo grande, com um fato de linho branco, estilo colonial, que o faz ainda maior, recebeu-nos com cerimónia, apertando os dedos de uma mão contra os da outra. Sem nos olhar nos olhos, fez-nos esperar na antecâmara, decorada com grandes livros de arte, de viagens e outras coisas. Um ar distinto. Pouco depois, dirigiu-se-nos em voz baixa e convidou-nos a ocupar uma mesa na sala de jantar, praticamente vazia. Pedimos. Trouxe água que verteu, à nossa frente, para dentro de um jarro de vidro abraçado de um torneado de metal. Daí passou-a para os nosso copos, sempre mantendo a garrafa de plástico sobre a mesa. O nosso colega pediu cordeiro e meia garrafa de tinto. O Desidério, assim se chama o gigante, trouxe uma garrafa e disse que só pagaria meia. A não ser que quisesse apenas um copo, brincou. Com isto, encheu o elegante copo com o conteúdo de toda a garrafa. Riu-se deliciado coma piada enquanto buscava outra jarra para onde vazou, novamente, o vinho todo para, logo a seguir, verter uma porção educadamente adequada para o mesmo copo. Ria-se, o tipo, deliciado com a brincadeira. Entre esta brincadeira e a etiqueta que era suposto adoptar, lá chegou o jantar. Boa comida.”. “Quando chegámos a casa, lavei-lhe a roupa e pu-la a secar”- disse-nos a senhora. Imagino que o nosso viajante, depois de tantas horas só, terá sentido o calor deste acolhimento.
DIA 4
O amigo atleta tinha-me dito: “Eu avisei que o traçado, que ele tinha imaginado, descia ao Sabor quatro vezes e, por 4 vezes, tinha que voltar a subir”. É certo que havia as pontes. Uma, logo abaixo do castelo de Bragança sobre o rio Fervença.
O nosso viajante tinha sido bem avisado pelo amigo: “A seguir, os caminhos estão todos condicionados pela auto-estrada. A primeira ponte sobre o Sabor, a jusante da de Gimonde, e uma outra num seu afluente, estão mesmo ao lado ou mesmo debaixo dos enormes viadutos”.
A seguir a Rio Frio, o traçado levava por caminhos rápidos e, finalmente, por um troço inclinado e de piso traiçoeiro, a uma magnífica ponte que liga Outeiro a Grijó de Parada, daí qualquer um desses nomes ser atribuído à ponte por gente diferente.
A subida seria feita pela mesma margem em caminhos inclinados. Os javalis não me deram qualquer informação útil.
Em Carção, dizem-nos que parou a comer uma sopa e uma sandes e a beber um panaché. Pelos hábitos, parece ser o mesmo sujeito. A tasca estava já na estrada para Santulhão e, lá à frente, poderia ver-se outra ponte.
O amigo desconhecia a ponte de Santulhão mas avisou que, mudando de margem, haveria que descer ao Sabor outra vez e atravessá-lo para conseguir chegar a Mogadouro. Tal seria feito pela ponte de Remondes, condenada a ser afogada na barragem do baixo Sabor.
Mesmo com todas estas dificuldades, imagino alguma decepção em não poder visitar outras pontes na vizinhança (uma ponte medieval perto de Carção, a de Argozelo, a de S. Joanico e a de Frieira). Ficarão para outras núpcias, imagino.
Não sabemos exactamente o que se passou. Imaginamos que o velhote tenha curtido todas as pontes por que passou e que tenha penado encostas acima, provavelmente empurrando a Vanessa a seu lado. Fui a Mogadouro e, no hotel, confirmaram a chegada do sujeito, já passava das oito. Vinha com ar sofrido. Queixava-se de dores nas costas. Quando lhe pediram o cartão de cidadão, entregou a carta de condução. Ainda não tinha dado conta que, em casa, pegara o cartão errado. Claramente está a ficar gágá. Na tasca ao lado disseram que não comeu grande coisa. Aparentemente não tinha dentes para a rijeza do bife da testa que lhe deram como prego. A zurrapa do vinho também a bebeu apenas pela metade. Provavelmente usou-o para empurrar umas garfadas indigestas pela goela abaixo.
DIA 1
Levantou-se a queixar-se de umas dores no metacarpo esquerdo que duravam desde o dia anterior. Confessou as suas dúvidas em frente da esposa mas ela nem ligou. Já o conhecia. “Teimoso como é...”. Acertou. Ainda não eram nove da manhã e já ele partia, mochila às costas, pernas ao léu. Dirigiu-se para o mar para se despedir dele. Podia ter seguido os trilhos da costa, que tão bem conhecia mas, talvez por essa mesma razão, resolveu fazer o que outros fazem no início da sua fantasia religiosa. Iria encontrar os peregrinos que iniciavam a sua viagem a São Tiago, de mochila às costas, bordão e concha de invertebrado com penteado reggae. Partilharia da sua fantasia durante uns breves quilómetros antes de abraçar a sua. Aproveitaria para partilhar algumas pontes num espírito comunitário. Seria breve, essa disponibilidade social, que ele não era dado aos rebanhos de gente. Seria um pequeno engano, uma sarcástica brincadeira com a humanidade.
Anotadas à margem do caminho de S. Tiago estavam umas visitas a três pontes sobre o rio Leça: a ponte do Carro, a ponte de D. Goimil e a ponte de Ronfes. De permeio, o caminho desenhado seguia a linha férrea que liga Leixões a Ermesinde. Só depois se entrava no caminho pouco interessante do santo, em direcção ao rio Ave.
Na ponte de D. Zameiro, um grupo ciclante, com ar de peregrinação a S. Tiago, viu-o passar. Um dos moços confessou ter tentado segui-lo mas rapidamente o perderam de vista na subida que se segue à ponte. Daí até ao rio Este não foi visto.
Uma caminhante de mochila às costas e pronúncia estranha confirmou tê-lo cumprimentado junto ao painel explicativo da ponte de S. Miguel dos Arcos e queixou-se de apenas ter recebido um resmungo de uma resposta. Outra senhora, de outra nação mais a Norte, mulher dos seus sessenta e tal anos, disse tê-lo fotografado para fins que não divulgou. Talvez a foto anime algum jantar de senhoras ou apareça numa página do Facebook.
O registo aponta a escolha de uma ecovia feito com base na linha férrea desactivada entre a Póvoa e Famalicão e um desvio, mais à frente, à procura de outras pontes sobre o Este: S. Veríssimo e Coura. Depois é só estrada até Braga.
Consultando os registos meteorológicos desse dia, dei-me conta que a chuva caiu abundante ao redor de Braga, a meio do dia, mas abrandou lá pelos lados de Prado.
Os cépticos irão dizer que, como foi visto pelos vizinhos e alguns melros empoleirados nos castanheiros, ainda não eram três horas da tarde, a colher ervilhas e groselhas, não parece provável que tenha cumprido sequer esta primeira etapa. No entanto, eu acredito que tenha despachado a coisa rapidamente para se dedicar à lavoura.
DIA 2
Um vizinho do nosso personagem atestou que o viu em cima da bicicleta, junto ao campo de jogos de Turiz, de manhã bem cedo. Não nos conseguiu dizer em que direcção rumava. Entre este momento e bem mais tarde não há qualquer registo de um avistamento. Sabemos que os planos incluíam a passagem por Amares, a descida à ponte de Prozelo, a estrada para Monsul e a imersão nos trilhos do monte de S. Mamede.
Poderia referir algumas informações de um grupo de motoqueiros mas parecem-me pouco credíveis pois o monte estava mergulhado nas nuvens. Dão conta da descida suicida de um idoso ciclista nessas encostas. Nas Cerdeirinhas não conseguimos testemunhos. Logo a seguir, uma engenhosa costura de traçados permitia subir à Vaca de onde seguia para a Cabreira. Mesmo apostado em acreditar nas capacidades do homem, penso que ele nunca teria escolhido subir ao talefe mas antes optaria por contorná-lo. Se o fez, poderá ter ficado admirado com o nascimento de um irmão do índio, lá nas pedras da Cabreira, antes da chegada ao Salto.
A ideia de ligar Turiz a Chaves num só dia vinha de há algum tempo atrás. Custa-me crer que tal empreendimento fosse tratado no contexto de uma travessia de vários dias. Não faz sentido. No entanto, a D. Maria do “Borda d’Água”, no Salto, afiança-nos que ele passou por lá. Aliás, detalhou como o cumprimentou e, sentindo a sua mão gelada, a agarrou entre as suas duas mãos e a aqueceu por breves segundos entre as suas. O dia estava nublado e cinzento lá para o cimo do monte. Afirmou-nos que tão cedo chegou, logo arrancou, comida que foi uma pequena sandes de presunto. Devia estar com pressa!
Outro depoimento útil foi o do senhor Indy, um velhote de fraco aspecto mas com um interior ainda funcionante. Chegava ele com a família a uma doçaria famosa, em Carreira da Lebre, a três quilómetros de Boticas, e vê, estacionada em frente do estabelecimento, uma bicicleta que imediatamente reconheceu como sendo a Titânia Vanessa. Sentou-se, aturdido, e esperou que o dono saísse. Surpreendeu o velhote roendo um biscoito de canela conforme saía, depois de pagar os seus consumos. Esta testemunha confidenciou-nos: “Nesse momento achei que deveria começar a acreditar numa força divina!”. Depois de nos confessar alguns dissabores, resultantes de conversas numa tasca que frequenta há anos, tentei recolher mais dados para a minha história. “Sim, disse-me que não subiu ao Barroso dadas as condições climatéricas”. Terá percorrido a estrada Salto-Boticas, presumi. Se o fez, terá, com certeza, encontrado uma linda ponte sobre o rio Beça, a ponte medieval de Pedrinha, com os seus cinco arcos.
Enquanto o senhor Indy me descrevia as mordomias do seu alojamento em Covas do Barroso, ainda me apercebi que terá ficado entusiasmado para se dedicar a travessias. “Talvez um dia ultrapasse “aquele problema” que tive na última tentativa”- confessou-me.
A saída de Boticas levava, finalmente, à junção do traçado ao da verdadeira travessia, a do Dragão, na base do Leiranco. Quem os experimentou, experimenta os trilhos intemporais, o santo Graal do BTT transmontano.
Na albergaria Jaime, em Chaves, obtive confirmação da chegada de um cansado viajante. Disseram-me que vinha exausto mas parecia feliz. No Cândido, o dono disse que comeu bem: uma sopa e feijoada. Pediu arroz extra. Resolvi experimentar o cardápio. A feijoada é sofrível mas deve ter sabido esplendidamente a um exausto viajante. Já o tinto, um carrascão local, lava bem a boca seca e pastosa de quem chega de um dia duro de pedal.
DIA 3
Não há relatos da sua saída de Chaves. Terá admirado as suas pontes? Talvez.
Apenas conseguimos informações concretas de um antigo colega de curso. Disse-nos que tinha combinado encontrar-se com ele ao quilómetro setenta, em Vilar d’Ossos. O que se passou entre Chaves e esse ponto de encontro é desconhecido. O traçado a que tivemos acesso mostra-nos uma subida por estrada seguida de uma saída por uns caminhos inclinados, monte acima, com passagem na ribeira de Sampaio. Achei tolice mas percebi o interesse em ver a pequena ponte, na ribeira. Adivinho o seu desgosto se viu o estado decrépito da estrutura. As heras recobrem-na completamente. As gentes que moram na vizinhança parecem não ter qualquer consideração pelos séculos que já durou. Talvez uma estrutura de betão armado fosse mais apreciada. Um vergonha. Gente bruta!
Terá o traçado seguido, então para a ponte romana de S. Lourenço, uma singela ponte ainda em uso pelas gentes locais, também conhecida como ponte do Arquinho.
Este trajecto é igual ao da Travessia do Dragão e é aqui que se inicia uma etapa bem difícil. Depois de passar o castelo de Monforte, segue-se para a cumeada que bordeja o Mousse e o Mente. A descida é alucinante: longa e muito rápida até ao S. Gonçalo.
Um homem diz-nos ter visto um ciclista parar nesse local nesse dia. Ter-lhe-á perguntado onde seria mais fácil atravessar a vau o rio Mente. Poderia tê-lo feito mais facilmente na ponte, a jusante. Assim, depois de atravessar o rio, seguiu a sua margem em cima de calhau rolado até próximo dessa ponte. A subida a S. Jomil não é das piores mas ajuda a desgastar as energias do dia.
O amigo do nosso protagonista recebeu-nos em sua casa para nos dar o seu testemunho. Casa grande, de espessos muros de pedra, decorada com gosto, móveis de nobres madeiras, estátuas e máscaras africanas. Sete cães no quintal fazem-nos a vida difícil ao entrar. Mesmo assim, os donos não confiam na bicharada e fecham cuidadosamente as portadas das janelas, todas as noites. Diz-nos ele que enviou ao nosso homem várias mensagens por telemóvel de que não recebeu qualquer resposta. Cerca da uma da tarde foi informado que o tipo comia uma sopa ao quilómetro 48. Previa chegar ao ponto de encontro lá pelas três. Apesar das inúmeras tentativas, não conseguiu contacto telefónico. A rede é fraca por aquelas bandas, admitiu. Às 15h00, como combinado, estava em Vilar d’Ossos à sua espera mas ele apenas chegou uma hora mais tarde. “Vinha um pouco afogueado”- disse-nos. Quando quis obter mais detalhes do nosso aventureiro, o amigo descrevia-me as suas aventuras na TransPortugal Race. “Sim, ao início ainda me acompanhava. Sabe, um mexicano colou-se a mim e...”. Rapidamente a conversa versava as suas aventuras. “Decidi levá-lo por caminhos novos, cruzando o Tuela na ponte da Soeira. Soberba."
"Como ia a dizer, o Vítor seguia colado ao americano e depois, disparava...”. Tentei outra vez. “É: ele disse-me que a descida ao Rabaçal foi por um trilho fantástico, inclinado, a pique sobre o rio. Voltando atrás, eu tinha combinado seguir com o Paulo mas numa etapa distanciei-me e ganhei-lhe 45 minutos...”. Numa última tentativa, perguntei como chegaram. “Depois de cruzar o Baceiro, a subida é longa até meia encosta da serra da Nogueira. É muito bonito, com as florestas de carvalho negral. Ele estava aflito. Empurrava frequentemente a bicicleta à mão. Sabe!? Tenho a idade dele mas cada vez estou melhor. Bebo vários litros de leite magro por dia e, como ia a dizer, o mexicano arrancou à chegada de Castelo de Vide e não esperou por mim. O palerma só ganhou 45 segundos”. Virei-me, então, para a esposa do amigo. “Coitado, quando cheguei a casa, ele parecia um zombie. Pus-lhe a roupa de molho em detergente e levámo-lo a jantar. Um restaurante especial. O dono, um tipo grande, com um fato de linho branco, estilo colonial, que o faz ainda maior, recebeu-nos com cerimónia, apertando os dedos de uma mão contra os da outra. Sem nos olhar nos olhos, fez-nos esperar na antecâmara, decorada com grandes livros de arte, de viagens e outras coisas. Um ar distinto. Pouco depois, dirigiu-se-nos em voz baixa e convidou-nos a ocupar uma mesa na sala de jantar, praticamente vazia. Pedimos. Trouxe água que verteu, à nossa frente, para dentro de um jarro de vidro abraçado de um torneado de metal. Daí passou-a para os nosso copos, sempre mantendo a garrafa de plástico sobre a mesa. O nosso colega pediu cordeiro e meia garrafa de tinto. O Desidério, assim se chama o gigante, trouxe uma garrafa e disse que só pagaria meia. A não ser que quisesse apenas um copo, brincou. Com isto, encheu o elegante copo com o conteúdo de toda a garrafa. Riu-se deliciado coma piada enquanto buscava outra jarra para onde vazou, novamente, o vinho todo para, logo a seguir, verter uma porção educadamente adequada para o mesmo copo. Ria-se, o tipo, deliciado com a brincadeira. Entre esta brincadeira e a etiqueta que era suposto adoptar, lá chegou o jantar. Boa comida.”. “Quando chegámos a casa, lavei-lhe a roupa e pu-la a secar”- disse-nos a senhora. Imagino que o nosso viajante, depois de tantas horas só, terá sentido o calor deste acolhimento.
DIA 4
O amigo atleta tinha-me dito: “Eu avisei que o traçado, que ele tinha imaginado, descia ao Sabor quatro vezes e, por 4 vezes, tinha que voltar a subir”. É certo que havia as pontes. Uma, logo abaixo do castelo de Bragança sobre o rio Fervença.
O nosso viajante tinha sido bem avisado pelo amigo: “A seguir, os caminhos estão todos condicionados pela auto-estrada. A primeira ponte sobre o Sabor, a jusante da de Gimonde, e uma outra num seu afluente, estão mesmo ao lado ou mesmo debaixo dos enormes viadutos”.
A seguir a Rio Frio, o traçado levava por caminhos rápidos e, finalmente, por um troço inclinado e de piso traiçoeiro, a uma magnífica ponte que liga Outeiro a Grijó de Parada, daí qualquer um desses nomes ser atribuído à ponte por gente diferente.
A subida seria feita pela mesma margem em caminhos inclinados. Os javalis não me deram qualquer informação útil.
Em Carção, dizem-nos que parou a comer uma sopa e uma sandes e a beber um panaché. Pelos hábitos, parece ser o mesmo sujeito. A tasca estava já na estrada para Santulhão e, lá à frente, poderia ver-se outra ponte.
O amigo desconhecia a ponte de Santulhão mas avisou que, mudando de margem, haveria que descer ao Sabor outra vez e atravessá-lo para conseguir chegar a Mogadouro. Tal seria feito pela ponte de Remondes, condenada a ser afogada na barragem do baixo Sabor.
Mesmo com todas estas dificuldades, imagino alguma decepção em não poder visitar outras pontes na vizinhança (uma ponte medieval perto de Carção, a de Argozelo, a de S. Joanico e a de Frieira). Ficarão para outras núpcias, imagino.
Não sabemos exactamente o que se passou. Imaginamos que o velhote tenha curtido todas as pontes por que passou e que tenha penado encostas acima, provavelmente empurrando a Vanessa a seu lado. Fui a Mogadouro e, no hotel, confirmaram a chegada do sujeito, já passava das oito. Vinha com ar sofrido. Queixava-se de dores nas costas. Quando lhe pediram o cartão de cidadão, entregou a carta de condução. Ainda não tinha dado conta que, em casa, pegara o cartão errado. Claramente está a ficar gágá. Na tasca ao lado disseram que não comeu grande coisa. Aparentemente não tinha dentes para a rijeza do bife da testa que lhe deram como prego. A zurrapa do vinho também a bebeu apenas pela metade. Provavelmente usou-o para empurrar umas garfadas indigestas pela goela abaixo.