O velho que colecionava pontes

lobo solitario

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Dizem que nunca aconteceu. Que foi tudo invenção ou aldrabice do tipo. Que era demasiado fantasioso. Eu, pessoalmente, não sei. Gosto de imaginar que foi realidade. Talvez uma realidade fantástica ou uma fantasia realista. Se calhar, foi tudo construído pela imaginação, uns postais velhos e umas fotografias antigas. Se calhar, aconteceu mesmo. Baseio as minhas descrições no registo de GPS que ele publicitou entre amigos como se precisasse de se comprometer para não desistir à partida. Fui à procura de testemunhas, feito detective privado. Tentei encontrar provas concretas da sua passagem pelos pontos anotados naquele registo. Tentarei ser o mais factual possível e dominar a minha vontade de acreditar. Dividirei a história nos oito dias que acredito terem sido usados para esta viagem.
DIA 1
Levantou-se a queixar-se de umas dores no metacarpo esquerdo que duravam desde o dia anterior. Confessou as suas dúvidas em frente da esposa mas ela nem ligou. Já o conhecia. “Teimoso como é...”. Acertou. Ainda não eram nove da manhã e já ele partia, mochila às costas, pernas ao léu. Dirigiu-se para o mar para se despedir dele. Podia ter seguido os trilhos da costa, que tão bem conhecia mas, talvez por essa mesma razão, resolveu fazer o que outros fazem no início da sua fantasia religiosa. Iria encontrar os peregrinos que iniciavam a sua viagem a São Tiago, de mochila às costas, bordão e concha de invertebrado com penteado reggae. Partilharia da sua fantasia durante uns breves quilómetros antes de abraçar a sua. Aproveitaria para partilhar algumas pontes num espírito comunitário. Seria breve, essa disponibilidade social, que ele não era dado aos rebanhos de gente. Seria um pequeno engano, uma sarcástica brincadeira com a humanidade.
Anotadas à margem do caminho de S. Tiago estavam umas visitas a três pontes sobre o rio Leça: a ponte do Carro, a ponte de D. Goimil e a ponte de Ronfes. De permeio, o caminho desenhado seguia a linha férrea que liga Leixões a Ermesinde. Só depois se entrava no caminho pouco interessante do santo, em direcção ao rio Ave.

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Na ponte de D. Zameiro, um grupo ciclante, com ar de peregrinação a S. Tiago, viu-o passar. Um dos moços confessou ter tentado segui-lo mas rapidamente o perderam de vista na subida que se segue à ponte. Daí até ao rio Este não foi visto.

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Uma caminhante de mochila às costas e pronúncia estranha confirmou tê-lo cumprimentado junto ao painel explicativo da ponte de S. Miguel dos Arcos e queixou-se de apenas ter recebido um resmungo de uma resposta. Outra senhora, de outra nação mais a Norte, mulher dos seus sessenta e tal anos, disse tê-lo fotografado para fins que não divulgou. Talvez a foto anime algum jantar de senhoras ou apareça numa página do Facebook.

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O registo aponta a escolha de uma ecovia feito com base na linha férrea desactivada entre a Póvoa e Famalicão e um desvio, mais à frente, à procura de outras pontes sobre o Este: S. Veríssimo e Coura. Depois é só estrada até Braga.

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Consultando os registos meteorológicos desse dia, dei-me conta que a chuva caiu abundante ao redor de Braga, a meio do dia, mas abrandou lá pelos lados de Prado.

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Os cépticos irão dizer que, como foi visto pelos vizinhos e alguns melros empoleirados nos castanheiros, ainda não eram três horas da tarde, a colher ervilhas e groselhas, não parece provável que tenha cumprido sequer esta primeira etapa. No entanto, eu acredito que tenha despachado a coisa rapidamente para se dedicar à lavoura.
DIA 2
Um vizinho do nosso personagem atestou que o viu em cima da bicicleta, junto ao campo de jogos de Turiz, de manhã bem cedo. Não nos conseguiu dizer em que direcção rumava. Entre este momento e bem mais tarde não há qualquer registo de um avistamento. Sabemos que os planos incluíam a passagem por Amares, a descida à ponte de Prozelo, a estrada para Monsul e a imersão nos trilhos do monte de S. Mamede.

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Poderia referir algumas informações de um grupo de motoqueiros mas parecem-me pouco credíveis pois o monte estava mergulhado nas nuvens. Dão conta da descida suicida de um idoso ciclista nessas encostas. Nas Cerdeirinhas não conseguimos testemunhos. Logo a seguir, uma engenhosa costura de traçados permitia subir à Vaca de onde seguia para a Cabreira. Mesmo apostado em acreditar nas capacidades do homem, penso que ele nunca teria escolhido subir ao talefe mas antes optaria por contorná-lo. Se o fez, poderá ter ficado admirado com o nascimento de um irmão do índio, lá nas pedras da Cabreira, antes da chegada ao Salto.

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A ideia de ligar Turiz a Chaves num só dia vinha de há algum tempo atrás. Custa-me crer que tal empreendimento fosse tratado no contexto de uma travessia de vários dias. Não faz sentido. No entanto, a D. Maria do “Borda d’Água”, no Salto, afiança-nos que ele passou por lá. Aliás, detalhou como o cumprimentou e, sentindo a sua mão gelada, a agarrou entre as suas duas mãos e a aqueceu por breves segundos entre as suas. O dia estava nublado e cinzento lá para o cimo do monte. Afirmou-nos que tão cedo chegou, logo arrancou, comida que foi uma pequena sandes de presunto. Devia estar com pressa!
Outro depoimento útil foi o do senhor Indy, um velhote de fraco aspecto mas com um interior ainda funcionante. Chegava ele com a família a uma doçaria famosa, em Carreira da Lebre, a três quilómetros de Boticas, e vê, estacionada em frente do estabelecimento, uma bicicleta que imediatamente reconheceu como sendo a Titânia Vanessa. Sentou-se, aturdido, e esperou que o dono saísse. Surpreendeu o velhote roendo um biscoito de canela conforme saía, depois de pagar os seus consumos. Esta testemunha confidenciou-nos: “Nesse momento achei que deveria começar a acreditar numa força divina!”. Depois de nos confessar alguns dissabores, resultantes de conversas numa tasca que frequenta há anos, tentei recolher mais dados para a minha história. “Sim, disse-me que não subiu ao Barroso dadas as condições climatéricas”. Terá percorrido a estrada Salto-Boticas, presumi. Se o fez, terá, com certeza, encontrado uma linda ponte sobre o rio Beça, a ponte medieval de Pedrinha, com os seus cinco arcos.

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Enquanto o senhor Indy me descrevia as mordomias do seu alojamento em Covas do Barroso, ainda me apercebi que terá ficado entusiasmado para se dedicar a travessias. “Talvez um dia ultrapasse “aquele problema” que tive na última tentativa”- confessou-me.
A saída de Boticas levava, finalmente, à junção do traçado ao da verdadeira travessia, a do Dragão, na base do Leiranco. Quem os experimentou, experimenta os trilhos intemporais, o santo Graal do BTT transmontano.

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Na albergaria Jaime, em Chaves, obtive confirmação da chegada de um cansado viajante. Disseram-me que vinha exausto mas parecia feliz. No Cândido, o dono disse que comeu bem: uma sopa e feijoada. Pediu arroz extra. Resolvi experimentar o cardápio. A feijoada é sofrível mas deve ter sabido esplendidamente a um exausto viajante. Já o tinto, um carrascão local, lava bem a boca seca e pastosa de quem chega de um dia duro de pedal.
DIA 3
Não há relatos da sua saída de Chaves. Terá admirado as suas pontes? Talvez.

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Apenas conseguimos informações concretas de um antigo colega de curso. Disse-nos que tinha combinado encontrar-se com ele ao quilómetro setenta, em Vilar d’Ossos. O que se passou entre Chaves e esse ponto de encontro é desconhecido. O traçado a que tivemos acesso mostra-nos uma subida por estrada seguida de uma saída por uns caminhos inclinados, monte acima, com passagem na ribeira de Sampaio. Achei tolice mas percebi o interesse em ver a pequena ponte, na ribeira. Adivinho o seu desgosto se viu o estado decrépito da estrutura. As heras recobrem-na completamente. As gentes que moram na vizinhança parecem não ter qualquer consideração pelos séculos que já durou. Talvez uma estrutura de betão armado fosse mais apreciada. Um vergonha. Gente bruta!

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Terá o traçado seguido, então para a ponte romana de S. Lourenço, uma singela ponte ainda em uso pelas gentes locais, também conhecida como ponte do Arquinho.

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Este trajecto é igual ao da Travessia do Dragão e é aqui que se inicia uma etapa bem difícil. Depois de passar o castelo de Monforte, segue-se para a cumeada que bordeja o Mousse e o Mente. A descida é alucinante: longa e muito rápida até ao S. Gonçalo.

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Um homem diz-nos ter visto um ciclista parar nesse local nesse dia. Ter-lhe-á perguntado onde seria mais fácil atravessar a vau o rio Mente. Poderia tê-lo feito mais facilmente na ponte, a jusante. Assim, depois de atravessar o rio, seguiu a sua margem em cima de calhau rolado até próximo dessa ponte. A subida a S. Jomil não é das piores mas ajuda a desgastar as energias do dia.
O amigo do nosso protagonista recebeu-nos em sua casa para nos dar o seu testemunho. Casa grande, de espessos muros de pedra, decorada com gosto, móveis de nobres madeiras, estátuas e máscaras africanas. Sete cães no quintal fazem-nos a vida difícil ao entrar. Mesmo assim, os donos não confiam na bicharada e fecham cuidadosamente as portadas das janelas, todas as noites. Diz-nos ele que enviou ao nosso homem várias mensagens por telemóvel de que não recebeu qualquer resposta. Cerca da uma da tarde foi informado que o tipo comia uma sopa ao quilómetro 48. Previa chegar ao ponto de encontro lá pelas três. Apesar das inúmeras tentativas, não conseguiu contacto telefónico. A rede é fraca por aquelas bandas, admitiu. Às 15h00, como combinado, estava em Vilar d’Ossos à sua espera mas ele apenas chegou uma hora mais tarde. “Vinha um pouco afogueado”- disse-nos. Quando quis obter mais detalhes do nosso aventureiro, o amigo descrevia-me as suas aventuras na TransPortugal Race. “Sim, ao início ainda me acompanhava. Sabe, um mexicano colou-se a mim e...”. Rapidamente a conversa versava as suas aventuras. “Decidi levá-lo por caminhos novos, cruzando o Tuela na ponte da Soeira. Soberba."

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"Como ia a dizer, o Vítor seguia colado ao americano e depois, disparava...”. Tentei outra vez. “É: ele disse-me que a descida ao Rabaçal foi por um trilho fantástico, inclinado, a pique sobre o rio. Voltando atrás, eu tinha combinado seguir com o Paulo mas numa etapa distanciei-me e ganhei-lhe 45 minutos...”. Numa última tentativa, perguntei como chegaram. “Depois de cruzar o Baceiro, a subida é longa até meia encosta da serra da Nogueira. É muito bonito, com as florestas de carvalho negral. Ele estava aflito. Empurrava frequentemente a bicicleta à mão. Sabe!? Tenho a idade dele mas cada vez estou melhor. Bebo vários litros de leite magro por dia e, como ia a dizer, o mexicano arrancou à chegada de Castelo de Vide e não esperou por mim. O palerma só ganhou 45 segundos”. Virei-me, então, para a esposa do amigo. “Coitado, quando cheguei a casa, ele parecia um zombie. Pus-lhe a roupa de molho em detergente e levámo-lo a jantar. Um restaurante especial. O dono, um tipo grande, com um fato de linho branco, estilo colonial, que o faz ainda maior, recebeu-nos com cerimónia, apertando os dedos de uma mão contra os da outra. Sem nos olhar nos olhos, fez-nos esperar na antecâmara, decorada com grandes livros de arte, de viagens e outras coisas. Um ar distinto. Pouco depois, dirigiu-se-nos em voz baixa e convidou-nos a ocupar uma mesa na sala de jantar, praticamente vazia. Pedimos. Trouxe água que verteu, à nossa frente, para dentro de um jarro de vidro abraçado de um torneado de metal. Daí passou-a para os nosso copos, sempre mantendo a garrafa de plástico sobre a mesa. O nosso colega pediu cordeiro e meia garrafa de tinto. O Desidério, assim se chama o gigante, trouxe uma garrafa e disse que só pagaria meia. A não ser que quisesse apenas um copo, brincou. Com isto, encheu o elegante copo com o conteúdo de toda a garrafa. Riu-se deliciado coma piada enquanto buscava outra jarra para onde vazou, novamente, o vinho todo para, logo a seguir, verter uma porção educadamente adequada para o mesmo copo. Ria-se, o tipo, deliciado com a brincadeira. Entre esta brincadeira e a etiqueta que era suposto adoptar, lá chegou o jantar. Boa comida.”. “Quando chegámos a casa, lavei-lhe a roupa e pu-la a secar”- disse-nos a senhora. Imagino que o nosso viajante, depois de tantas horas só, terá sentido o calor deste acolhimento.
DIA 4
O amigo atleta tinha-me dito: “Eu avisei que o traçado, que ele tinha imaginado, descia ao Sabor quatro vezes e, por 4 vezes, tinha que voltar a subir”. É certo que havia as pontes. Uma, logo abaixo do castelo de Bragança sobre o rio Fervença.

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O nosso viajante tinha sido bem avisado pelo amigo: “A seguir, os caminhos estão todos condicionados pela auto-estrada. A primeira ponte sobre o Sabor, a jusante da de Gimonde, e uma outra num seu afluente, estão mesmo ao lado ou mesmo debaixo dos enormes viadutos”.
A seguir a Rio Frio, o traçado levava por caminhos rápidos e, finalmente, por um troço inclinado e de piso traiçoeiro, a uma magnífica ponte que liga Outeiro a Grijó de Parada, daí qualquer um desses nomes ser atribuído à ponte por gente diferente.

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A subida seria feita pela mesma margem em caminhos inclinados. Os javalis não me deram qualquer informação útil.

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Em Carção, dizem-nos que parou a comer uma sopa e uma sandes e a beber um panaché. Pelos hábitos, parece ser o mesmo sujeito. A tasca estava já na estrada para Santulhão e, lá à frente, poderia ver-se outra ponte.

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O amigo desconhecia a ponte de Santulhão mas avisou que, mudando de margem, haveria que descer ao Sabor outra vez e atravessá-lo para conseguir chegar a Mogadouro. Tal seria feito pela ponte de Remondes, condenada a ser afogada na barragem do baixo Sabor.

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Mesmo com todas estas dificuldades, imagino alguma decepção em não poder visitar outras pontes na vizinhança (uma ponte medieval perto de Carção, a de Argozelo, a de S. Joanico e a de Frieira). Ficarão para outras núpcias, imagino.
Não sabemos exactamente o que se passou. Imaginamos que o velhote tenha curtido todas as pontes por que passou e que tenha penado encostas acima, provavelmente empurrando a Vanessa a seu lado. Fui a Mogadouro e, no hotel, confirmaram a chegada do sujeito, já passava das oito. Vinha com ar sofrido. Queixava-se de dores nas costas. Quando lhe pediram o cartão de cidadão, entregou a carta de condução. Ainda não tinha dado conta que, em casa, pegara o cartão errado. Claramente está a ficar gágá. Na tasca ao lado disseram que não comeu grande coisa. Aparentemente não tinha dentes para a rijeza do bife da testa que lhe deram como prego. A zurrapa do vinho também a bebeu apenas pela metade. Provavelmente usou-o para empurrar umas garfadas indigestas pela goela abaixo.
 

lobo solitario

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DIA 5
Viram-no sair de Mogadouro em direcção a sudeste. Pelo que vi nos registos, tratava-se de seguir caminhos rurais até entroncar os caminhos da Trans-Portugal do António Malvar, em Bruçó. Curiosamente, a caravana “Tour” tinha por lá passado um ou dois dias antes. Presmo que ainda se distinguissem os rodados das bicicletas marcados no solo. Com a chegada a estes trilhos, acabavam as grandes dificuldades. Outras poderiam ser evitadas. A dona de um café em Lagoaça confirmou a passagem do nosso peregrino. Lembra-se de lhe ter dito que o grupo de ciclistas que passara dois dias antes tinha trazido três cães a reboque e que a bicharada tinha acampado naquela terra. De vez em quando iam cheirar a beira do café, no entender da senhora para procurar o cheiro das bicicletas que tinham acompanhado vários quilómetros. Como ela não os queria por perto, estava a lavar o chão quando o velhote chegou. Diz que ele apenas bebeu um sumo e rapidamente abalou. Pensa que para os lados do Carrascalinho, de onde se pode avistar o Douro pela primeira vez nesta Travessia.

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A Trans-Portugal acampa em Freixo-de-Espada-à-Cinta mas os planos marcavam uma continuação até Barca d’Alva e subida ao planalto beirão. Num restaurante de cave, em Freixo, confirmaram-nos que um tipo, chegado em bicicleta, tinha pedido uma sopa, uma omelete e um panaché. A senhora, carrancuda, disse que se recusou a fritar batatas. Não ia aquecer óleo apenas para este cliente. Disse que lhe serviu um arroz de legumes, em vez das pommes frites.
Se bem conheço o personagem, para poupar esforços, terá evitado subir ao cabeço do Penedo Durão. Afinal, já lá tinha ido várias vezes ver os abutres e não queria lá deixar a cansada carcaça desta vez. Esta estratégia ter-lhe-ia poupado bastante canseira e em pouco tempo o teria colocado em Poiares e pronto para descer uma das calçadas. Terá escolhido a de Alpajares ou a de Sant’Ana? Pessoalmente, prefiro a segunda. No entanto, não há testemunhos oculares da passagem de algum ciclista por estas bandas naquele dia. Não os há porque aquela zona é muito remota e com poucas almas, dirão os mais predispostos a acreditar nesta história.

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Sabe-se ao certo que ele foi avistado a beber em Barca d’Alva. Uma brasileira de voz sonora assim o confirmou. Quando o viram partir, viram-no fazê-lo em direcção à estrada nacional que liga a Figueira de Castelo Rodrigo. O motorista de um dos três autocarros da Douro Azul que cruzaram a zona nesse dia viu-o a pedalar esforçadamente pela estrada acima. Lembra-se perfeitamente porque teve de abrandar na curva para não atropelar o senhor. Não seria agradável para aqueles estrangeiros todos que transportava, verem um nativo esborrachado no asfalto.
Quando estudei este percurso, percebi a intenção: a estrada passa junto a uma linda ponte sobre a Ribeira de Aguiar, um pequeno afluente do Douro. A ponte de Escalhão. Também a fui espreitar e achei curiosa a quantidade de lagostins de água doce que por lá há. Imagino que o local oferece um bom repouso para quem sobe aquele desnível sob o calor do Douro.

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Daquele ponto a Figueira é um “tirinho”. Penso que ele poderia ter seguido para Almeida mas quando indaguei junto da estalagem de Figueira, a senhora confirmou que ele se alojara nesse estabelecimento. “Já cá tinha estado com a esposa e reconheci-o imediatamente”- disse-me. “Ficou numas das “suites” porque queria a bicicleta bem guardada.”- acrescentou. Quando lhe perguntei se tinha dado algumas informações sobre a sua viagem, ela disse que, realmente, lhe tinha mencionado qualquer coisa mas apenas se lembrava de lhe ter dito que, dias antes, tinham por lá passado 17 ciclistas do Porto, devidamente acompanhados por um autocarro que lhes transportava as coisas. “Tinham feito mais de cem quilómetros!”- disse, com manifesta admiração. Perguntei-lhe se conhecia o destino no nosso homem. “Mencionou Viseu”- disse, “até lhe contei que outro dia tinham estado cá uns senhores de Viseu, a passear de bicicleta”. Desisti de arrancar mais informações. Tentei num restaurante. Disseram-me que tinha comido carapau assado e bebido uma canequinha de tinto da zona, que apreciara.
DIA 6
O percurso previsto para este dia é de fácil feitura. De Figueira à Guarda temos o planalto beirão. Pelos trilhos escolhidos, são apenas 77Km e pouco acumulado. O desenho do trajecto incluía um troço inicial em asfalto para uma visita a Vilar Torpim. Aí, um pequeno desvio à direita tinha sido desenhado e imagino que ele nem se lembrasse para que servia. Poderá tê-lo esquecido ou ter-se forçado a obedecer ao traçado. Se o fez, visitou, certamente, uma pequena ponte, semi-escondida pela vegetação. Esta estrutura (ponte do Lagar de Água) poderá ter origem romana e estava inserida numa via romana que passava, vinda desde Mérida em direcção a Barca d’Alva, neste território habitado pelas gentes Interannienses, habitantes d’entre os rios Coa e Águeda. Ninguém lhe parece ligar um grosso e não há indicação alguma a guiar o visitante ao local.

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Só depois desta visita se ligaria o traçado aos da Trans-Portugal do António, até Almeida. Aí encontrámos um sujeito que afirmou ter visto um ciclista de bigodinho chegar à esplanada onde estava a tomar o seu Porto. Não seriam 11h00. Não se lembra bem mas disse que o tipo bebeu um sumo e uma água e parecia tranquilo e descansado. Viu-o arrancar pelo caminho antigo abaixo, em direcção ao vale do Côa. O caminho é uma via antiga, calcetada a pedra miúda e termina na ponte Grande, sobre o Côa. Uma tabuleta cagada pelos pássaros informa o turista que se trata de uma ponte do século XVII, remodelada no século XIX. Terá sido usada pelas tropas anglo-lusas e pelos franceses na III invasão dos gauleses e um cruzeiro presta homenagem à batalha entre as tropas do general Craufurd e as do marechal Ney.

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A ponte desenha uma pequena curva e ostenta uma lápide comemorativa com dizeres difíceis de entender. O Côa segue suavemente vale abaixo, por entre o granito enegrecido pelos líquens e musgos. No planalto, segue-se por caminhos largos, de piso compacto, decorado aqui e ali com grandes lajes de granito. Em Pínzio, fui encontrar uma senhora, dona de um pequeno restaurante, que me assegurou ter servido uma sopa, uma sandes de carne estufada e um panaché a um homem que correspondia à minha descrição. Depois de comer tranquilamente, abalou calmamente, seguindo por aquele caminho junto ao cemitério.
O planalto é uma zona que encanta as gentes que gostam de paisagens rudes. Muros de pedra, algumas árvores, giestas, flores selvagens, calhaus, muitos calhaus. Aqui e ali, alguém arranca sustento de uns poucos metros quadrados de terra. Não há muito que se possa escrever. Há que vivê-lo!

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Imagino que o velho, caso tenha cumprido esta etapa (e não seria difícil fazê-lo), tenha seguido lentamente, com algumas paragens para registar na sua memória as paisagens, os cheiros e o ruído do vento e dos pássaros. Terá gasto algum tempo a visitar o topo do Jarmelo, com as suas edificações mais variadas, desde capelas, museu e arena de touradas. Terá apreciado os caminhos divertidos de chegada e partida desse topo. Terá olhado para o horizonte e avistado a cidade da Guarda nos seus 1000m de altitude.
No hotel Lusitânia, dizem-nos ter dado entrada, pelas cinco da tarde, um senhor que dava pelo nome que indiquei. Guardaram-lhe ciosamente a máquina junto da recepção, habituados que estão a respeitar estes caros aparelhos. Disseram-me que o viram apanhar o autocarro em direcção à cidade onde se terá deleitado com rancho e, muito particularmente, com a farinheira que o acompanhava.

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DIA 7
O pessoal do Lusitânia viu-o partir. Não foram a única testemunha da sua viagem. Encontrei um jovem trabalhador de uma serralharia na Lageosa do Mondego, perto da ponte do Ladrão, que afirma ter sido abordado por um idoso ciclista vestido de azul que lhe pediu um pouco de WD-40. Borrifou a mistela no desviador de trás da cinzenta bicicleta, coberta de pó. Percebeu que tinha dificuldades de funcionamento. Quando partiu, o tipo parecia contente mas ao serralheiro pareceu que a máquina não estava em bom estado.
Fui estudar o percurso programado. Tinha sido adaptado de uma saga da série Who’s Back, uma ciclonovela montada por colegas de pedal do senhor. De início, acompanha-se a auto-estrada. Alguns quilómetros depois, sobe-se ao monte em trilhos interessantes que vão estreitando, estreitando, estreitando, até serem comidos pela vegetação. Não me pareceram trilhos adequados a uma Travessia. Na zona de Celorico da Beira, o plano implicava uma descida pela estrada para uma visita à ponte da Lavandeira, uma ponte destruída pelos franceses durante as invasões e reconstruída subsequentemente.

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De seguida fugia-se aos trilhos uzebeques tomando a estrada até à ponte dos Juncais. Segue-se paralelo ao Mondêgo, à linha férrea e à auto-estrada. Mais à frente, próximo da Ponte Nova, voltava-se aos trilhos. Mais dificuldades. Quem desenhou a coisa gosta de cansar o pessoal. Em Chãs de Tavares viram-no comer sopa e sandes de presunto e a beber um panaché. Depois, os trilhos tornam-se mais agradáveis.

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Entra-se em pinhais, adopta-se um trilho marcado, o trilho de Ludares, volta-se a sair para outros caminhos e chega-se ao rio Dão e à barragem de Fagilde.

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Finalmente, volta-se, novamente, junto à auto-estrada. Quando visitei a zona, achei curiosa a existência de um “pipeline” paralelo ao asfalto. Pensei: “Um oleoduto? Aqui?”. Só quando passei por uma zona em que a estrutura babava grande quantidade do seu conteúdo para a linha de água é que percebi que, afinal, era apenas um merdoduto.
Fazendo contas, são cerca de 100 Km para se chegar a Viseu. Se alguns me pareceram agradáveis, muitos outros o não serão. Em Viseu encontrei quem lhe deu guarida. Outro casal, colegas de curso que não via há mais de dez anos. Contaram-me que o receberam como a um irmão, que lhe deram dormida no chão do escritório montado nos arrumos da casa. Também o alimentaram com um nutritivo arroz de tamboril e marisco que terá repetido. Fiquei com a impressão de que acreditaram piamente no que o tipo contava. Muitos quilómetros, muitas dificuldades, enfim, fizera ali um romance dos diabos para impressionar os amigos. Devo, no entanto, aconselhar alguma reserva na interpretação destes dados. Poderão não ser exactos. Os filhos do casal também lá estavam mas, mais sóbrios, não ligaram às histórias do velhote. Estavam mais interessados na máquina de pesos para musculação que tinham adquirido e que atravancava, agora, a sala do bilhar.
DIA 8
Continuei a conversa com o anfitrião. Disse-me que acordou com uns barulhos em casa. Quando chegou à cozinha, lá estava ele a comer a fruta toda. Para parar com aquele exagero, descongelou dois pães grandes usando o micro-ondas, programado para exactamente 28 segundos. Disse-me que outro tempo faz com que o pão fique molengão. Fez-lhe café. Viu-o comer com apetite enquanto iam conversando. Finalmente saciado, ele pediu para se ir preparar para ir indo. Eram já quase nove horas da manhã. À saída, cruzaram-se com um grupo de três ciclistas de roda fina. Simpaticamente, estes ofereceram-se para guiarem o nosso personagem até à Bodiosa onde seria fácil entrar na antiga via férrea do Vouga, transformada num estradão de piso duro e de fácil progressão. Quando entrevistei um desses atletas, disse-me que ficou entusiasmado com a história dessa Travessia. Aparentemente, foi na conversa do tipo. Até lhe pediu os traçados GPS para, quiçá um dia, experimentá-los. Não sei se alguma vez os recebeu, pois não temos a certeza que existam...
Nesta saída de Viseu, este simpático senhor foi pedindo aos colegas que abrandassem pois ouvia as dificuldades respiratórias do velhote, na sua tentativa de seguir, na sua Vanessa, aquelas beldades de pneu estreito.
Se é verdade que há este relato bem fundamentado até ao início do trilho férreo, também é verdade que mais ninguém pode relatar o que se passou depois. Fui espreitar esses caminhos. São de progressão rápida, numa descida suave até às termas de S. Pedro do Sul, Vouzela e, numa zona menos agradável, Oliveira de Frades. É um caminho diferente das outras ciclovias ou ecopistas construídas nas vias de caminho de ferro inactivadas. Densamente arborizado, é um caminho semelhante a um trilho de montanha, com o rio correndo paralelo a norte, lá em baixo. Aqui e ali, passa-se por cima de estreitas pontes.

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Vouzela tem uma linda ponte medieval que poderia ter sido ignorada por um ciclista entusiasmado com um rápido progresso no terreno. Não sabemos se foi visitada pelo nosso homem, caso lá tenha chegado.

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Se é rápida a chegada a Vouzela, o que resta do percurso ainda demora. São cerca de oitenta e tal quilómetros para descer o vale até Macinhata do Vouga. Os registos a que tive acesso indicavam a intenção de visitar a ponte sobre o rio Marnel. Tê-lo-á feito? Não sei. Ninguém se lembra de ter visto qualquer ciclista. Também é verdade que todos, com quem falei, estavam entretidos com a pesca e poderão ter deixado escapar o visitante.

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Estes mesmos registos indicavam que o que se seguiria seriam cerca de vinte desgastantes quilómetros ao longo da N1. Só lá pelas bandas do rio Antuã é que o traçado se desviava para visitar algumas pontes locais. Salientam-se a ponte do Manica, a de Riba-Ul e a da Pica.

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Restava um regresso penoso, atravessando São João da Madeira, lá num alto, Santa Maria da Feira, noutro alto, e uma série de estradas até perto de Esmoriz, Espinho e a costa marítima até ao Porto. Tenho dúvidas que tudo isto tenha sido feito. Dá cerca de 178 Km. Um colega (sei-o porque o interroguei) tentou comunicar com ele mas o seu telemóvel estava desligado. Propunha-se acompanhá-lo em parte do caminho mas nunca chegou à fala com ele. O único dado concreto foi fornecido pelas filhas. Eram quase dez da noite, ouviram um barulho no quintal. Era ele. Estava com um aspecto sumido, disseram. Tentei perceber se chegou de boleia, se tinham ouvido algum carro a parar, portas a bater, conversas lá fora. Não sabiam. Talvez sim, talvez não. Afinal, o bairro ainda tem algum moveimento. Quando lhes perguntei se ele tinha dito alguma coisa, elas disseram que lhes pareceu ter ouvido: “Raispartam as pontes”. Não têm a certeza. Dizem que comeu um pouco e foi para a cama.

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Na senda da jornada épica deste "nosso" velho que colecionava pontes - atrever-me-ei a acrescentar que foi um relato de fazer inveja a qualquer bom investigador que se preze - o ilustre cronista faz com que estes betetistas acabem por colecionar sonhos e dar azo à imaginação!

Poderoso!

:clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap::clap:
 

SURFAS

New Member
À já um tempo que fazia falta uma prosa destas aqui nas crónicas, amigo Lobo Solitário afinal parece não encostou a sua amiga .... pelo menos definitivamente.

Grande relato, espero que haja mais.
 

indy

Member
Fiquei mais descansado.
Agora sei que quando me cansar do que tenho feito ultimamente não preciso parar de andar de bicicleta.
Ainda há muito que conhecer e visitar por este país.
 

jmoniz

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Vejo que o ilustre senhor das terras de Turiz, continua com o mesmo vigor na arte do desenho de riscos (vulgo tracks).
Bem haja.
 

mikka_1

New Member
"Dizem que nunca aconteceu. Que foi tudo invenção ou aldrabice do tipo. Que era demasiado fantasioso. Eu, pessoalmente, não sei. Gosto de imaginar que foi realidade. Talvez uma realidade fantástica ou uma fantasia realista. Se calhar, foi tudo construído pela imaginação, uns postais velhos e umas fotografias antigas. Se calhar, aconteceu mesmo."


Aconteceu mesmo... Tive o prazer de cruzar com o "velho" na minha ida a Vouzela.
Mas que grande volta!
Continue assim...

Um abraço do mikka.
 
M

mirach

Guest
Conheci hoje este blog e gostaria de dar os parabéns ao seu autor.
Também gosto muito de antigas pontes Romanas e Medievais, e sempre que posso vou à procura delas, por esse Portugal fora.
Estou a planear uma visita a Trás-os-Montes, e uma dessas pontes que gostaria de visitar é a de Grijó de Parada (sobre o rio Sabor).
Procurei pela net trilhos em GPX (para Garmin) que me possam levar até à ponte, mas não encontrei nada...
Costuma guardar as trilhas dos passeios efectuados?
Tem algum ficheiro deste local?

Obrigado pela atenção,
Com os melhores cumprimentos

Miguel
 
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