Mordi “Les Dents de Morcles” e soube-me pela vida…
Há cerca de dois meses enquanto tentava subir à barragem de “Grande Dixence” a 2.455 mts (ver crónica nº030) ocorreu um episódio que me marcou pela positiva (estavam à espera que escrevesse pela negativa, isso é o que toda a gente sabe fazer ou dizer, isso não sou eu), isto é, aos 1.806 mts e após ter sofrido as agruras do calor, da solidão, do trajeto na sua grande maioria em alcatrão, acabei por me resignar e desistir da ascensão programada.
Quem me conhece, sabe que a palavra desistir, não faz ou não fazia parte do meu léxico no que toca a BTT, mas nesse dia não sei o que se passou, talvez como disse há tempos um camarada de voltas “ a carne esmorece”, neste caso o espírito.
Se já passaram por isso, sabem que na hora não medimos as consequências dos nossos atos e somente no período pós volta enquanto processamos todos os dados e acontecimentos da mesma é que nos damos conta que afinal poderíamos ter feito melhor, porque acreditem, não há nada de pior do que redigir uma crónica em que alguns elementos de reportagem não são nossos, não foram vivenciados “in loco”.
Como disse alguém, o arrependimento é a chave que abre todas as fechaduras, pelo que a partir daí prometi a mim próprio criar um trilho que me permitisse redimir-me e motivar-me para algo superior.
O cenário elegido para a volta foi a zona do “Valais”, que por ficar não muito longe de Lausanne, permite que se aproveite ao máximo o tempo disponível evitando-se desta forma perder muito tempo em deslocações.
A volta iniciaria em “Saint Maurice” (348 mts) e daí dirigir-me-ia às “Dents de Morcles” (2.970 mts) ou até onde fosse possível com a minha fiel companheira. Claro que de antemão já sabia que pelo menos chegaria à “Cabane de la Tourche” a 2.198 mts.
Pelas 08h30 iniciei a volta e embora as previsões meteorológicas fossem de sol para o dia, o certo é que estava um frio de morte, pelo que toca a vestir toda a indumentária de inverno, inclusive a última aquisição (corta vento facial).
Eis parte dos registos do dia… (restantes encontram-se na página
Bravos do Pelotão, ver crónica Nº034).
“Cime de l’Est” com os seus 3.178 mts, visto a partir de "Saint Maurice", ponto de partida da minha aventura a 348 mts. Esta montanha faz parte de um conjunto chamado de “Dents du Midi”, já mencionado na crónica nº028.
O meu destino final “Dents de Morcles” a 2.970 mts ou até onde fosse possível ir com a minha fiel amiga. Em virtude de ficar à sombra das 2 montanhas mencionadas anteriormente, Saint Maurice é um local muito frio onde o sol penetra por períodos muito curtos. Gostei do efeito do sol a passar por cima da montanha, venham daí os aliens.
Junto ao rio “Rhône” a caminho de “Lavey-les-Bains” rapei um frio tão intenso como se estivesse em alta montanha.
“Lavey-les-Bains”, importante centro termal cujas fontes foram descobertas em 1831. Estas águas são as mais quentes da Suíça (69ºC). A esta hora da manhã (8h45) já havia gente a tomar banho, pudera com águas cuja temperatura varia entre os 32 e 36ºC, também eu tomava. Mais informações em
http://www.lavey-les-bains.ch/fr/bains-thermaux/horaires-tarifs. Em redor do recinto pairava um cheiro agradável a eucalipto mentolado.
A caminho de “Morcles” passei por esta cascata. Não parece mas no total são mais de 100 mts.
“Saint Maurice” a 348 mts e banhada pelo sol. Possui o mais antigo mosteiro da Europa a funcionar sem interrupção desde o ano 515 e erigido em honra ao comandante Agaune (Negro originário do Sudão) e aos 6500 membros da sua legião (legião Tebana), massacrados aqui por se terem recusado prestar culto ao imperador romano uma vez que se tinham convertido ao cristianismo. A meio da foto naquelas rochas no sentido da ponte (a verde), temos a “Chapelle de Notre-Dame du Scex” construída no séc.XVIII a 90 mts de altura e visível a partir da estação de caminhos-de-ferro.
Quando desenhei o trilho via Google Earth não sabia que iria passar no interior de um quartel, neste caso “in loco” vim a descobrir que se tratava de “Fort Dailly” a 1.280 mts, construído em 1894. É o maior e mais bem apetrechado quartel de artilharia pesada da Suíça com várias baterias de canhões que cobrem grande parte desta área do “Valais”. É constituído por vários túneis construídos no interior da rocha e em 1946 ocorreu uma explosão que destruiu 449 toneladas de material acumulado ao longo dos anos. Só faltava mesmo era surgir alguém a disparar, eheheh…
Aqui encontro-me ainda a 1.325 mts e ao longe assinalado a vermelho a “Cabane de la Tourche” a 2.198 mts (Ponto mais alto da volta).
Bonita panorâmica com “Le Cime de l’Est” (3.178 mts), em baixo no centro “Fort Dailly” (1.280 mts) e do lado direito da foto o restaurante “Les Martinaux” (1.670 mts). O costume por parte dos caminheiros é deixarem aí os seus carros (TT) no parque de estacionamento existente.
Ao fundo o “lac Léman” e “Montreux” do lado direito da foto. Do lado esquerdo da foto a central térmica de Chavalon, onde já fui muito feliz (ver crónica nº026).
Se até aqui tinha “doído”, a partir de agora é a matar.
Nunca perdendo o objetivo de vista “Cabane de la Tourche” o trilho lá prosseguia em ziguezague (na foto são visíveis 3 patamares).
“Just to remember where I came from”.
Esta zona não perdoa. Depois de ir à “Cabane de la Tourche” o meu regresso far-se-á pelo lado direito da foto “La Rionda” a 2.168 mts (curral para ovelhas).
Mais uma de pormenor em que são visíveis caminheiros a subir (parte central da foto, no limite da verdura).
O meu objetivo está junto ao nevoeiro na encosta. Claro que se fosse a pé (caminheiro) teria sido tão fácil vencer aquele desnível de 300 mts, isto desde o caminho, mas como sou acima de tudo um betetista, tive de fazer mais uns kms para depois voltar para trás.
Estou quase lá, só falta +/- 1,5 km. Era notório que o nevoeiro queria estragar a festa.
Como sempre “nothing is free in life” e tinha ainda que sofrer um bocado.
Estes trilhos foram feitos para a malta que caminha e não para “artistas” de bicla.
Uma vez que o nevoeiro parecia não querer dar tréguas ponderei seriamente se regressaria pelo caminho de ascensão ou se prosseguiria com o estipulado. Aqui como sabem instala-se aquela dicotomia (ir vs não ir) pelo que como não podia deixar de ser prevaleceu o gozo da descida e conhecer novas paisagens. Como não sabia quando é que cá voltaria, havia que aproveitar, independentemente dos obstáculos que viesse a encontrar. Na vida o caminho faz-se caminhando e de preferência sempre em frente.
Sem querer ser repetitivo, aqui não há margem para erros.
“Almost there just 500 mts more”
Aleluia consegui!!! “Cabane de la Tourche” a 2.198 mts (o ponto mais alto atingido até ao momento por este Bravo em cima de uma bicla). Agora vamos ver o que se encontra do outro lado da montanha.
Ahahah!!! Queriam não queriam, eu também, mas não vai ser desta. (Fuc…g Fog)
Com receio do nevoeiro e o avançar da hora resolvi meter-me ao caminho. Conforme poderão constatar pelas próximas fotos “I made the right decision”.
Este é o tal caminho que permitia a pé vencer o desnível de 300 mts. Apetece saltar no vazio, não apetece?
“La Rionda” a 2.168 mts (curral para ovelhas) e ponto de partida para uma descida de +/- 14 kms onde encontrei todo o tipo de piso (ver próximas fotos). Aqui fui atacado por um rebanho de mais de 300 ovelhas, pelo que fartei-me de pisar caganitas de ovelha enquanto procurava acertar no trilho. A “shit” de ovelha cola-se a tudo (pneus, sapatilhas, pedais, cleats) e para retirar só mesmo com a ajuda de um pau, pois o meu receio era que com a velocidade começasse a saltar “shit” por todos os lados e já estão a ver a cena (eu a entrar no comboio de regresso a Lausanne todo prendado e a empestar o ambiente, eheheh…).
Vista da “Cabane de la Tourche” a partir de “La Rionda”. Afinal o nevoeiro desistiu.
Início da descida. Aquela montanha ao fundo do lado direito da foto, coberta de neve é o “Mont Blanc” com os seus 4.810 mts (França). A próxima etapa é aquela aldeia junto ao rio “Collonges” (450 mts). Irei atravessar o rio por cima daquela ponte.
Um último adeus às minhas amigas “caganiteiras”. Comam menos.
O trilho nesta zona, embora com muita pedra solta, estava bem sinalizado.
Mas também apanhei partes bem rolantes.
E escarpas perigosas Q.B.
Uma das zonas mais perigosa do single.
Mas fez-se sem stress “take it easy”.
Este artista um dia ir-se-á, mas a obra do pintor ficará.
A partir de agora é downhill.
O downhill lá continuava, umas vezes montado outras vezes nem por isso. Rolar só, obriga a tomar precauções redobradas mas nem por isso deixamos de “enjoyar”. Embora a descer, demorei deste ponto quase 1 hora para fazer 1 km e vencer um desnível de 350 mts.
Encontramo-nos a 1.650 mts “L’Au d’Arbignon”. Aqui encontrei um criador de suínos (10 pigs). A partir de agora são mesmo 12 kms sempre a dar-lhe. Uma vez que o estradão era estreito (só passava um carro) e com receio de surgir inesperadamente um obstáculo, não passei dos 55. Foi realmente esta descida que me motivou lá em cima e valeu a pena.
Lembram-se do curral das ovelhas e do pintor, pois…
Parafraseando Séneca “Aquilo que foi doloroso suportar torna-se agradável depois de suportado sendo natural sentir prazer no final do próprio sofrimento” e não posso estar mais de acordo, pois sofri até idealizar a volta assim como no desenrolar da mesma. Mas para mim, BTT é isso mesmo, é sofrer to “achieve our goal” e no fim sermos brindados com essa fabulosa sensação de superação, de missão cumprida.
No final da volta o contador indicava cerca de 44 kms e 1.855 mts de acumulado de subida (não esquecer que foram somente 22 kms a subir, eheheh…).
O grande erro de certos betetistas é imaginar que se é mais do que se é e/ou julgar que se está aquém daquilo que se vale. Com esta volta provei a mim próprio (a minha luta é a minha luta, pessoal, egoísta e difere da dos restantes) que ainda estou cá para as curvas, bastando somente acreditar, acreditar e acreditar…
Cumprimentos betetistas e até à próxima crónica…
Alexandre Pereira
Um Bravo do Pelotão, neste caso sem…