Ora bem, aquilo de ontem foi mesmo bom e inspirou-me a escrever para daqui por uns tempos poder voltar a ler e recordar os bons momentos passados:
A manhã estava escura e chuvosa, um Domingo pouco convidativo a passeios. Talvez por isso na padaria, nosso ponto de encontro habitual, ainda não houvesse grande coisa por onde escolher. As empregadas não deviam esperar clientes madrugadores. Assim fizemo-nos à estrada apenas com água e umas barras de marmelada nas mochilas. Alguma coisa se havia de arranjar por lá.
Na auto-estrada o mesmo cenário, trânsito quase inexistente e a 360º nem sinal das "boas abertas" prometidas. Mesmo assim não estava desanimado, talvez a vacina de chuva do dia anterior durante o passeio de singlespeed me tivesse deixado imune. Enquanto o Tico conduzia o "cevamobil" eu olhava o horizonte cinzento e pensava em como era improvável o evento para onde me dirigia. Improvável pela minha conhecida aversão às condições invernais. Improvável porque, talvez por ser Ribatejano, não há forma de me entrar na cabeça que haja algo chamado Seara no coração do Minho. E, finalmente, pela imagem que formei do Zé Carlos e que o torna, para mim, no mais improvável organizador de eventos que poderia haver.
Não foi difícil encontrar a sede do Seara Trilhos, local de partida/chegada deste Go70. Já por lá se encontravam alguns participantes, outros iam chegando. Mas em número longe do anunciado. Confirma-se mais uma vez que eventos à borla nunca têm grande adesão. Hoje em dia as pessoas não procuram um possível bom percurso para BTT, a procura incide mais sobre eventos onde se possa ir almoçar, a acreditar na quantidade de citações que se lê sobre almoços e abastecimentos nos rescaldos respectivos.
Desde cedo dois dos ciclistas que por lá se encontravam me despertaram a atenção. Inicialmente, atendendo ao equipamento mais ao género freerider, até julguei que fossem motoqueiros da organização para acompanhar o percurso. Mas não, um deles até já me parecia conhecer. Pelos vistos aquilo que às vezes por aqui escrevo também é lido fora do meu círculo de amigos. Vim a saber que se chamava António, e que por vezes também respondia por Bichu do Matu. Expansivo, ia animando as conversas debaixo do telheiro onde nos abrigávamos da chuva, aguardando a partida. Já o outro, mais alto, Filipe de seu nome, e moço de voz segura e ponderada, comportava-se como uma espécie de consciência "Olha que não é bem assim, António. Tens de compreender que as pessoas...".
Entretanto apercebi-me que as atenções se iam concentrando em torno duma qualquer bicicleta de preço exorbitante. 500€ por um cubo????!!! Mas aquilo dava para aí para pagar quase toda a minha bicicleta! Pelos valores em causa só se me subisse a serra sozinha e no fim ainda dar-me alguma satisfação sexual. Decididamente tenho de rever a forma de gerir as minhas economias. Disfarçadamente afastei a minha montada com o pé, tentando fazê-la passar despercebida, não fosse alguém achar anormal ter pago apenas 60€ pelo quadro.
Depois de um breve briefing, onde fomos mais uma vez alertados para os perigos do atravessamento da estrada ao km 40, tivemos luz verde da organização para nos fazermos ao caminho assim que entendêssemos. A partir deste ponto vou deixar de referir, salvo especial interesse para a descrição, a chuva, o vento e o frio que nos haviam de acompanhar durante toda a jornada.
Nos primeiros kms dirigimo-nos à ciclovia nas margens do Lima. Talvez a intenção de quem desenhou o percurso fosse boa, um ligeiro aquecimento rolante antes de começarem as subidas. Mas com aquelas terras baixas completamente alagadas a coisa tornou-se mais num arrefecimento para ambientar o corpo para o resto do dia. Seguíamos inicialmente na companhia do Myrage, com responsabilidades organizativas, e dos já referidos António e Filipe. Estes dois últimos acabaram por optar por um ritmo mais rápido, o Myrage também havia de ficar retido algures e em breve eu e o Tico rolávamos sozinhos serra acima. Entretanto, ao som de másculos gritos de "Esquerda! Direita!" já tínhamos sido ultrapassados pelos pequenos pelotões de cromos habituais nestas coisas, pedalando furiosamente, embora nem sempre pelo trilho certo, obrigando-os a algumas inversões de marcha. Bem me parecia que havia um motivo para aos poucos ter vindo a perder o gosto pela socialização em eventos organizados.
No início da subida para a serra da Nora tivemos aquele que viria a ser o nosso único contratempo mecânico, com o pneu traseiro do Tico a perder pressão. Nada que uns bar de pressão extra e o líquido anti-furo não resolvesse. Continuando a escalada lá fomos contornando a serra fazendo a aproximação ao famoso posto de vigia. Apesar da última secção de estradão ser algo íngreme, esta aproximação acabou por ser bem mais suave que a versão que tinha experimentado há algumas meses atrás, guiado pelo Myrage, bem mais à bruta.
No alto o ponto de abastecimento montado pela organização tentava resistir estoicamente à força dos elementos. Voltámos a encontrar também os nossos recentes amigos António e Filipe com quem a partir daí havíamos de compartilhar o resto do percurso. Não nos demorámos por ali, era necessário continuar em movimento para manter o corpo quente.
A saída dali para fora foi feita a descer por um trilho técnico desenhado pelo meio do granito ao qual a água acabou por acrescentar dificuldade extra. Confesso que, ciente das minhas limitações técnicas, me "cortei" em algumas secções. Mas não me arrependo, depois de ter visto o Tico a voar por cima do guiador concluí que, de facto, foi a melhor opção.
Depois de algum desce e sobe lá acabámos por chegar a outro ponto que, ao que parece, é um dos ex-libris do BTT ali da zona. Um pequeno single ziguezagueante que, salvo as diferenças entre o granito e o calcário, me fez lembrar os trilhos da Serra de Aire.
Continuando o percurso, algumas descidas rápidas seguidas do sobe-e-desce com várias passagens pela Circular da Nora. Passado algum tempo lá encontrámos o jeep amarelo donde saiu de máquina fotográfica em punho uma figura sinistra de impermeável verde azeitona. Sempre de poucas palavras, cicatriz na testa e sorriso enigmático, parecia maior do que na realidade seria. Diria pelo menos uns 6ft6in. Ou são efeitos do halloween ou já vi demasiados filmes sobre serial killers... Julgava eu que já estaríamos perto da separação 40/70 mas rapidamente nos tirou a esperança, anunciando que antes disso ainda teríamos mais uma boa escalada à encosta da Nora. Pode ter sido apenas ilusão mas, enquanto nos afastávamos, pareceu-me ouvir por entre o ruído da tempestade um riso maquiavélico "AHAHAHAHAAAHHHH". Um arrepio percorreu-me a espinha e não me atrevi a olhar para trás, estugando a pedalada para me manter próximo dos meus companheiros.
A subida que se seguiu, num piso que parecia que continha cola, foi provavelmente a que mais me custou em toda a jornada o que me levou a ter por vezes desejos de que as árvores adquiridas germinassem não nas encostas da serra mas sim nas cavidades anais dos Seara Boyz... viradas do avesso, de preferência. Mas tudo o que sobe tem de descer e aqui não foi excepção. Cá em baixo encontrámos um pequeno parque e o GPS indicava a existência dum café por ali. Como eram horas de almoço resolvemos procurá-lo. "Café Boa-Morte", apropriado.
Enquanto eu, o Tico e o Filipe pedíamos umas sandes de panado o António mostrava-nos aquilo que já tinha anunciado, que vinha preparado para sobreviver em autonomia durante vários dias, se necessário, sacando da mochila um tupperware com uma salada de feijão-frade e ovo de aspecto suculento.
Depois é que foram elas. Abandonado o conforto do café e com o percurso a descer toda a gente se contraía em cima das bicicletas, desejando fervorosamente a próxima subida que nos devolvesse algum calor corporal. Ela lá acabou por aparecer, dando acesso a uns trilhos bem bonitos, pintados com as cores de Outono. Descíamos de novo e o GPS alertava-nos para o tal perigoso km 40. Mas a organização tinha pensado em tudo e uma chicane obrigava-nos a reduzir a velocidade na aproximação a esse ponto. Resta saber se terá lá ficado para o dia seguinte, vi há uns dias um documentário sobre uma espécie em extinção na Península Ibérica e não gostava de ter conhecimento de mais um exemplar atropelado na valeta.
A separação 40/70 foi devidamente assinalada com uma foto. Pensava para com o fecho de correr do impermeável "Podia ter-me juntado a uns gajos que me convencessem de que era mais sensato ficar por aqui. Mas não, tive logo de simpatizar com estes dois parvos...".
A'Berta teimava em nos fintar, deixando-nos apenas, por vezes, vislumbrar uns tímidos raios solares lá ao longe. Iniciámos a ascensão da senhora que se seguia. Ainda sem tempo para sentir os efeitos revigorantes dos "black eyed peas", era agora altura de o António ir gerindo como podia o esforço da subida. Já tinha feito aquilo a descer com o My, no tal passeio atrás referido, e na altura tinha ficado com a ideia de que aquilo poderia render um bocado a subir. A nebelina dava um ar encantando aos vales e encostas. Apetecia-me fotografar mas havia preguiça para abrir a bolsa, tirar a máquina para fora do saco plástico, fotografar e voltar a fazer o processo inverso.
O cume foi atingido e restava-nos atravessar o pequeno vale que nos separava da Capela de S. Justa onde nos aguardava o já conhecido Land Rover amarelo com o seu sinistro ocupante. Curioso, sempre que nos encontrávamos parecia que o ambiente se tornava ainda mais tempestuoso. Soubemos nessa altura, embora já desconfiássemos atendendo às marcas que íamos vendo no chão, que afinal só havia uma pessoa a fazer o percurso à nossa frente e, possivelmente, dois atrás. Essa possibilidade não se veio a confirmar e devem ter informado do facto o guardião pois passado um pouco ouvimos atrás de nós o ronronar do pontente veículo amarelo. Veio-me à memória Christine, o famoso carro assassino do filme de Jonh Carpenter e mais uma vez a adrenalina fez-me aumentar a cadência.
Mais uma zona técnica e mais uns tombos dos meus companheiros, sempre dispostos a demonstrar um pouco mais de audácia do que eu. A última pequena subida mais técnica também já era minha conhecida e muito do meu agrado embora desta vez a aderência nem sempre estivesse disposta a colaborar. O GPS indicava que a chegada estava próxima. No entanto ainda restavam uns kms rolantes através dum estradão a meia encosta antes das descidas finais. Acabou por não ser sempre tão rolante como isso pois a intervalos regulares estavam armadilhado com uma espécie de areias movediças arrastadas pela chuva do cima das encostas ardidas.
Nos últimos kms aproveitei para me ir despedindo do António e do Filipe, grandes companheiros de pedalada. Pode ser que nos voltemos a encontrar um dia destes para percorrer outros trilhos. Valeu mesmo!
Fomos amavelmente recebidos na sede do clube de nome improvável onde devo ter entupido o chuveiro de tanto lixo que o meu corpo largou. E nunca pensei que dois copos de vinho do Porto me soubessem tão bem no final dum passeio.
Despedimo-nos, eu e o Tico, do pessoal do Seara Trilhos agradecendo, com toda a sinceridade, o excelente dia passado em cima da bicicleta e durante o regresso a casa o tema de conversa incidiu, como não podia deixar de ser, sobre os acontecimentos do dia que estava a terminar. De vez em quando olhava lá para fora e inspirava profundamente, parecendo ainda sentir aquele ar fresco a invadir-me os pulmões.