lobo solitario
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Base lunar FCP7SLB1, 10 de Junho de 2090
Querido diário
Arranjei, finalmente, uma velha máquina que consegue descodificar o conteúdo daquela caixinha que encontrei nas coisas do meu bisavô. Essa máquina tem uma engraçada maçã a enfeitar a tampa mas ainda não percebi porque está com uma trinca de um dos lados. A caixinha, marcada 160G, continha uma quantidade incrível de ficheiros com música antiquíssima como aquela de um grupo entitulado, paradoxalmente, Nouvelle Vague. Além de uns artigos chatíssimos com coisas que estudei quando ainda tinha 13 anos, encontrei algo que me despertou o interesse: uns textos em que o meu bisavô relata uma espécie de passeios turísticos que fazia usando uma estrutura bizarra, com duas rodas raiadas e em que o movimento das pernas se transmitia a um sistema primitivo de alavancas que causava o movimento da coisa. As velocidades atingidas eram perfeitamente patéticas apesar de, nalguns escritos, ele se manifestar orgulhosíssimo com elas. Hoje, depois de tratar da monitorização da reciclagem das águas do esgoto principal para o almoço de amanhã, entretive-me a ler a descrição de um desses passeiozitos. Descrevia, ao que as notas demasiado sumárias deixavam transparecer, uma Travessia (sim, com letra maiúscula, não me perguntes porquê) que ligaria Ponte de Lima a Ponte de Lima, em dois dias terrenos. O conceito era estranho mas não encontrei muita informação sobre este local da Terra a não ser que há muito que se encontra abaixo do nível das águas do mar, quando este entrou pelo vale do Lima adentro, durante o grande degelo do início do século. Há uma ponte recuperada na altura que os americanos compraram para enfeitar a base aqui ao lado. Parece-me que era usada, na época do meu bisavô, para atravessar o vale. Parece estúpido, eu sei, pois aqui faríamos essa passagem com um simples salto. O velhote juntou-se nesses dois dias a mais três companheiros a quem se refere como Nicholetto, Hirsuto e Clavículas. Não sei se seriam os seus verdadeiros nomes ou se se tratava de algum código. Há muito pouca informação sobre o primeiro dia a não ser uma intrigante queixa sobre "pedalarem" (era o termo que usavam para descrever o seu esforço pateta) debaixo de morrinha constante (trata-se, ao que apurei, de queda de gotículas finas de água). A minha imaginação soltou-se e vi-me a passar oito horas sob a constante queda de água. Que delícia! Pura ficção para quem, como eu, só pode tomar um chuveiro de 1 minuto duas vezes ao ano. O resto do tempo tenho de me bastar com toalhetes reciclados se quero manter um mínimo de higiene pessoal. Outra imagem que me foi difícil reconstituir foi a de "bosques de carvalhos, húmidos, com musgo a decorar as pedras de granito dos muros ancestrais, lá para os lados do Oural". Só vi árvores em projecções holográficas quando fui ao Museu da Terra. Aqui só temos uma pequena horta que pertence ao Dr. Leite Sócrates, comandante da base. Além disso, temos os eucaliptos de plástico do centro comercial mas já têm as cores desbotadas. Apenas cheiram bem pois a fábrica de perfumes e alimentos acerta os níveis todos os dias.
Durante esse primeiro dia, parece que dois dos companheiros ficaram para trás numa "longa subida" (não te rias; para eles, um desnível de poucas centenas de metros era algo difícil de ultrapassar!) entre Portela de Vade e Mixões da Serra. Esse atraso fez com que o meu bisavô apanhasse um frio "do caraças" (não encontrei esse termo no nosso dicionário mas deve ser algo relacionado com volumetria ou quantidade). Durante várias partes do seu texto, o meu bisavô menciona repetidamente aqueles 25 minutos. Aparentemente desagradados com o longo chuveiro, os passeantes evitaram cruzar certas calçadas por lugares como Cutelo ou a ponte do Quintão. Dirigiram-se, tolhidos de frio, para Caldas do Gerês. Penso que na altura ainda não deveriam fabricar os fatos isotérmicos que usamos hoje para reciclar energia, água e sais.
As notas mais exuberantes referem-se à refeição da noite que, para a maioria, foi constituída por fragmentos de cadáver de animais bovinos parcialmente queimados sobre algum tipo de substância incandescente. Que nojo. Lembrei-me logo do meu namorado quando morreu numa explosão de combustível nuclear na fábrica dos iranianos, na outra face da Lua. O meu bisavô terá comido algum animal com tentáculos e sem ossos, como aqueles parasitas que atacaram os exploradores da nave A330 quando ela caíu no grande Oceano de Oregão Vermelho. Fiquei contente de me alimentar saudavelmente com Syntex à moda do Porto e Caldo Verde com poli-UR-4-t-3ano insuflado crocante, rico em omega-3 e 6.
Agora vou-me deitar e amanhã tentarei continuar com a leitura. Há um ficheiro estranho com imagens sequenciais que tentarei, entretanto, decifrar.
Até amanhã
Vanessa Travessa
Querido diário
Arranjei, finalmente, uma velha máquina que consegue descodificar o conteúdo daquela caixinha que encontrei nas coisas do meu bisavô. Essa máquina tem uma engraçada maçã a enfeitar a tampa mas ainda não percebi porque está com uma trinca de um dos lados. A caixinha, marcada 160G, continha uma quantidade incrível de ficheiros com música antiquíssima como aquela de um grupo entitulado, paradoxalmente, Nouvelle Vague. Além de uns artigos chatíssimos com coisas que estudei quando ainda tinha 13 anos, encontrei algo que me despertou o interesse: uns textos em que o meu bisavô relata uma espécie de passeios turísticos que fazia usando uma estrutura bizarra, com duas rodas raiadas e em que o movimento das pernas se transmitia a um sistema primitivo de alavancas que causava o movimento da coisa. As velocidades atingidas eram perfeitamente patéticas apesar de, nalguns escritos, ele se manifestar orgulhosíssimo com elas. Hoje, depois de tratar da monitorização da reciclagem das águas do esgoto principal para o almoço de amanhã, entretive-me a ler a descrição de um desses passeiozitos. Descrevia, ao que as notas demasiado sumárias deixavam transparecer, uma Travessia (sim, com letra maiúscula, não me perguntes porquê) que ligaria Ponte de Lima a Ponte de Lima, em dois dias terrenos. O conceito era estranho mas não encontrei muita informação sobre este local da Terra a não ser que há muito que se encontra abaixo do nível das águas do mar, quando este entrou pelo vale do Lima adentro, durante o grande degelo do início do século. Há uma ponte recuperada na altura que os americanos compraram para enfeitar a base aqui ao lado. Parece-me que era usada, na época do meu bisavô, para atravessar o vale. Parece estúpido, eu sei, pois aqui faríamos essa passagem com um simples salto. O velhote juntou-se nesses dois dias a mais três companheiros a quem se refere como Nicholetto, Hirsuto e Clavículas. Não sei se seriam os seus verdadeiros nomes ou se se tratava de algum código. Há muito pouca informação sobre o primeiro dia a não ser uma intrigante queixa sobre "pedalarem" (era o termo que usavam para descrever o seu esforço pateta) debaixo de morrinha constante (trata-se, ao que apurei, de queda de gotículas finas de água). A minha imaginação soltou-se e vi-me a passar oito horas sob a constante queda de água. Que delícia! Pura ficção para quem, como eu, só pode tomar um chuveiro de 1 minuto duas vezes ao ano. O resto do tempo tenho de me bastar com toalhetes reciclados se quero manter um mínimo de higiene pessoal. Outra imagem que me foi difícil reconstituir foi a de "bosques de carvalhos, húmidos, com musgo a decorar as pedras de granito dos muros ancestrais, lá para os lados do Oural". Só vi árvores em projecções holográficas quando fui ao Museu da Terra. Aqui só temos uma pequena horta que pertence ao Dr. Leite Sócrates, comandante da base. Além disso, temos os eucaliptos de plástico do centro comercial mas já têm as cores desbotadas. Apenas cheiram bem pois a fábrica de perfumes e alimentos acerta os níveis todos os dias.
Durante esse primeiro dia, parece que dois dos companheiros ficaram para trás numa "longa subida" (não te rias; para eles, um desnível de poucas centenas de metros era algo difícil de ultrapassar!) entre Portela de Vade e Mixões da Serra. Esse atraso fez com que o meu bisavô apanhasse um frio "do caraças" (não encontrei esse termo no nosso dicionário mas deve ser algo relacionado com volumetria ou quantidade). Durante várias partes do seu texto, o meu bisavô menciona repetidamente aqueles 25 minutos. Aparentemente desagradados com o longo chuveiro, os passeantes evitaram cruzar certas calçadas por lugares como Cutelo ou a ponte do Quintão. Dirigiram-se, tolhidos de frio, para Caldas do Gerês. Penso que na altura ainda não deveriam fabricar os fatos isotérmicos que usamos hoje para reciclar energia, água e sais.
As notas mais exuberantes referem-se à refeição da noite que, para a maioria, foi constituída por fragmentos de cadáver de animais bovinos parcialmente queimados sobre algum tipo de substância incandescente. Que nojo. Lembrei-me logo do meu namorado quando morreu numa explosão de combustível nuclear na fábrica dos iranianos, na outra face da Lua. O meu bisavô terá comido algum animal com tentáculos e sem ossos, como aqueles parasitas que atacaram os exploradores da nave A330 quando ela caíu no grande Oceano de Oregão Vermelho. Fiquei contente de me alimentar saudavelmente com Syntex à moda do Porto e Caldo Verde com poli-UR-4-t-3ano insuflado crocante, rico em omega-3 e 6.
Agora vou-me deitar e amanhã tentarei continuar com a leitura. Há um ficheiro estranho com imagens sequenciais que tentarei, entretanto, decifrar.
Até amanhã
Vanessa Travessa