Vila Velha de Ródão, 23 de Maio de 2009
Caro amigo
Espero que esta carta te vá encontrar bem de saúde, assim como a todos os teus. Nos por cá todos bem, felizmente.
Estarás provavelmente admirado com a forma como esta missiva chega até ti, mas não podia deixar de aproveitar a passagem, aqui pela terrinha, de dois carteiros. Não um, mas dois, e de Alhos Vedros, o que me deixa mais confiante relativamente à chegada da dita ao destino.
Para além disso, os carteiros vão bem acompanhados por mais cinco ciclistas (alguns ainda com cara de enjoo devido às curvas, na carrinha, mas isso fica para depois…), o que aumenta a garantia de bom serviço postal. Aliás, o mais velho dos pedalantes pareceu-me pessoa distinta e de boa educação, e com isso também fico mais sossegado.
Indo directamente ao assunto da carta : algo de muito estranho se tem passado comigo ultimamente. Não sei se tem a ver com aquele curso de astrologia que acabei há tempos, se com umas coisas que tenho andado a fumar…. Mas acontece que recentemente tenho tido umas visões. Verdade! Comecei por sonhar que o Benfica perdia o campeonato… acertei, mas não fiquei muito espantado, porque a previsão, diga-se de passagem, não era difícil. Outras se seguiram, mas não vêm agora ao caso.
Preciso então da tua ajuda para confirmar a autenticidade destas minhas novas capacidades. O que te vou contar é o resultado da última dessas transes e peço-te que à chegada dos ciclistas aí a Marvão possas perguntar-lhes acerca da viagem, para termos a certeza que as minhas premonições se confirmaram.
Sei que vieram ontem e que passaram por Vendas Novas, onde “aviaram” umas bifanas, o que só abona a favor deles. Sei também que ficaram a dormir aí perto de Marvão, mais concretamente em casa da D. Francisca e do Sr. João Pinto, boa gente de Alvarrões, concelho de S. Salvador de Aramenha. São pais de um dos carteiros, o que tem uma bicicleta esquisita a que parece faltar qualquer coisa à frente no lado direito… Sei tudo isto, não por artes mágicas, mas porque os encontrei à chegada a Ródão, depois de uma viagem na carrinha do Sr. João. Descarregaram as máquinas aqui mesmo à minha porta e vi que havia de tudo : desde a tal esquisita a uma sem mudanças, passando por uma extravagância de titânio com suspensão total, etc…
Enquanto eles preparavam as binas é que eu tive a tal visão. Aproveitei para a escrever nesta carta e lhes pedir para te entregarem. Sem lhes dizer nada, claro. Compreendes?
Concerteza que sim, mas que raio “vi” eu? , perguntarás.
Então aqui vai o meu presságio:
Eles irão sair daqui e parar junto à ponte para observarem a extraordinária beleza das Portas do Ródão. São tipos da cidade, mas não insensíveis às belezas naturais. Seguirão depois ao longo do belo e grande Rio Tejo durante alguns quilómetros e, mais ou menos aos 15km de viagem, encontrarão uma subida qualificada como “impossível” por outros que lá têm passado. Será realmente impossível de subir a pedalar para quase todos… apenas um deles, o homem da bicicleta canadiana branquinha conseguirá ultrapassar este obstáculo. Desconfio, mas não posso garantir, que o facto se deve aos aninhos de treino de halterofilismo do dito pedalante…o homem é estilo frigorífico – baixinho mas forte.
Irão parar em Póvoa e Meadas, para um primeiro “mata-bicho”.
Já antes tinham passado em Salavessa, mas a larica ainda não apertava, pelo que não interromperam a pedalada, até porque o gajo da bicicleta sem mudanças tem mau feitio e não gosta de paragens. Foi naquele café que já conheces… lembras-te de já lá teres visto várias vezes outros grupos chefiados por um senhor ali dos lados de Carnaxide, Oeiras, onde mora a tua comadre?
Não tenho bem a certeza, mas desconfio que depois irão na direcção de Castelo de Vide. Os caminhos são bonitos, a paisagem também e só se forem burros é que não aproveitarão. Pensarás, a esta altura, que poderão perder-se por essas veredas fora, mas fica descansado, os tipos vêm artilhados com um aparelhómetro semelhante àquele que o teu colega Xico usa no carro que está sintonizado com os satélites. Não sei como é que aquilo funciona, mas reparei que são um bocado parecidos com telemóveis…enfim, modernices. Nos meus tempos de tropa, a gente safava-se era com a bússola e as cartas militares, mas isto agora é outra loiça.
A subida para Castelo de Vide há-de causar-lhes algum “empeno” (termo que gostam de utilizar, vá-se lá saber porquê), mas nova paragem para recuperação naquela pastelaria ao pé da Igreja está prevista na minha transe. Inveja tenho eu de lá não estar com eles, até porque um dos moços é de cá da zona e sabe bem que as boleimas são uma especialidade que ninguém desdenha. Um dos ciclistas, o mais betinho, irá comer o bolo com faca e garfo e tudo… gajos de Tercena, é o que é….single speed…. está bem…. O que tu queres sei eu, pá ! (assegura-te que esta carta não chega às mãos dele, é o fotógrafo, pois…)
Lá arrancarão de Castelo de Vide, satisfeitos como que viram, em direcção aí à tua terra. E ficarão deslumbrados com os trilhos. Fetos, carvalhos, calçadas em pedra. Dificuldades que agradarão em especial ao tal fundamentalista da faca e garfo. Mas que algum transtorno físico causarão a todos. Vale-lhes que um é chefe de Bombeiros e que em caso de apuro os poderá socorrer… aqui a minha visão não é muito segura, mas penso que tal não será necessário.
Finalmente na tua terra poderás encontrá-los lá no alto, observando a vasta paisagem e degustando um belo gelado (reparo agora que esta malta das bicicletas come e bebe que se farta) numa esplanada do castelo.
Marvão é uma pérola, como sabemos. E eles não discordarão, são gente inteligente, apesar de virem lá dos lados da capital.
Depois de te entregarem esta carta irão continuar a viagem até Alvarrões. De Marvão descerão pela calçada dos esses sucessivos, que irá fazer alguma mossa em especial no artista que trouxe a tal bicicleta sem mudanças nem suspensão. Grande maluco.
Chegados lá abaixo, passarão pela Portagem e adivinho que ficarão admirados com a beleza do local, dos trilhos e da ponte romana. Depois ainda farão uma visitinha à zona das ruínas romanas de Ammaia. Aparentam ser homens de cultura (pelo menos o mais velho, um cavalheiro) e a vida para eles não deve ser só pedalar…
Quando de lá saírem, a chuva que ameaçou durante todo o dia começará finalmente a cair e obrigará o grupo a despachar-se para chegar ao destino. Prevejo que terão sorte, até porque a merecem, e a grande bátega já os apanhará em casa. Cansados mas contentes, terão ainda fôlego para aviar uma grelhada mista que o anfitrião Carlos e os seus simpáticos familiares prepararam para fim de festa. Há tipos com sorte.
Companheiro, termino aqui a minha história, renovando os votos de muita saúde e que os velhos hábitos de comunicação epistolar se reavivem, apesar destas modernices de internetes, e tal. Cumprimentos ao pessoal e até breve!
p.s. vou comprar uma bicicleta.