Bicho-do-Mato
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No Meio do Dilúvio
Quando ontem saímos do café que serve de ponto de encontro em Stª Marta de Corroios, ao contrário do que é costume, ninguém perguntou:
“Então, como é que é? Qual é a volta para hoje?”
Não estranhei. Aliás, ninguém estranhou.
Na verdade, após tanta ansiedade durante a última semana com o desafio feito no “Fórum”, todos nós esperávamos o momento mágico de nos mandarmos feitos loucos por aquela descida abaixo, mesmo, mesmo ao lado do Cristo Rei e com acesso directo, senão ao céu, pelo menos ao doce marulhar das ondas do Tejo.
“Doce marulhar”, não é?
Doce o Caraças!!! O Camandro!!! O Catano!!! O Caneco!!! – Não, não vou utilizar a outra expressão popular boçal (utilizada pelas gajas com buço) em que estão a pensar.
Adiante.
Depois de uma descida com pelo menos 45º de inclinação, em que não vi “boi” da estrada por causa da água da chuva que o pneu da frente teimava em levantar e que (apesar do minúsculo guarda-lamas) me saltava para os olhos, depois do “single-track” que se seguiu, que mais parecia um caminho de “passadores” perdido no meio da Colômbia ou da Bolívia, havia ainda uma surpresa final, que nos tiraria a todos o fôlego. LITERALMENTE!!!
Mas já lá vamos…
Já no final do referido “single”, oiço o Best que ao me ver abrandar, pergunta:
- Então Bicho?
Ainda a recompor-me da descida, e olhando incrédulo para o cenário à minha frente, (enquanto que com as costas da luva encharcada limpava a água e a areia que me saltara para a cara) respondi-lhe:
- BEM, MEU,… C´A G´ANDA PEDRA!!!...
- Pois é, metes-te na bejeca, nos fumos, e depois quem paga são os pneus…
- Não, meu! – respondi-lhe eu. – É mesmo uma G´ANDA PEDRA!
- Bicho, isso aí é a primeira base do tabuleiro da Ponte!!!
De repente calou-se e então eu percebi que finalmente tinha visto o mesmo que eu (que por ir à frente, tinha visto primeiro).
Se não queríamos voltar para trás, teríamos de passar por cima de centenas de milhar de penedos com arestas mais afiadas que aquelas facas chinesas que até cortam como se fosse manteiga, pregos de 2 cm de diâmetro. A terminar estas arestas erguiam-se bicos (isto soa-me mal) pontiagudos como lanças. Para fechar com chave de ouro, a cobrir as pedras existia um revestimento - ora esverdeado, ora acastanhado - de algas traiçoeiras, ameaçando mandar-nos ao chão ou partir-nos uma perna, cada vez que ousávamos levantar o pé para dar um passo.
Antes de se mandarem às pedras, Best e Bicho olharam para trás.
O resto do pessoal vinha colado a eles. Sim, é que esta gajada, não gosta de perder nem a feijões! Lá estava o Yamah Bike, lá vinham também o MAG (inteiro, apesar de ter descido praticamente sem travões) o Pastor com as bocas do costume e o BBC ( o Bruno). Coitado do Bruno… Ainda está mal refeito do choque frontal com o muro, e já lhe espetam com esta.
Isto há gente sem sentimentos!…
A meio dos penedos alguém interrompe o infindável rol de pragas do Pastor para dizer:
- Quem aqui fazia falta era o Luís de Miratejo. Ia adorar isto! A esta hora já estava farto de protestar que isto é uma “G´anda jorda”.
- Quem? O Comandante?
- Esse mesmo!
Mas a plantação de penedos não era tudo.
Quando 20 minutos depois acabámos de os ultrapassar e chegámos de novo à areia de uma minúscula praia, tínhamos à nossa espera um grupo de pescadores que à porta do seu abrigo e meio incrédulos com aquilo que viam, nos indicaram a subida até ao Pragal. Uma subida em terra batida (ou deverei dizer barro batido?) cortada por um rego de água cujo caudal nada ficava a dever às célebres e piores “levadas” na ilha da Madeira.
Uma subida mesmo à maneira para um outro companheiro sempre presente (o tal, que faz subidas na vertical a subir como se fossem descidas também na vertical, mas a descer).
Não fosse o doce - e sobretudo pestilento - aroma emanado pela estação de tratamento de esgotos, e estivesse tempo de sol em vez de chuva, seguramente que a vista lá de cima seria mesmo fabulosa.
Acabada que estava a subida, conseguimos com alguma dificuldade (sejamos honestos) resistir à tentação de seguir directinhos para o banho quente e para o conforto do lar, e lá fomos nós até à Costa, sempre a pedalar no meio de chuva - apesar das pragas do MAG por a lama e a areia nesta altura já lhe terem comido totalmente as pastilhas do seu travão da frente -, sempre com a imagem sobre o horizonte dos croissants com creme de ovo (huuummm!) e dos galões bem quentinhos como miragem.
Estes gajos não conseguem mesmo passar sem o bolinho… (eu cá prefiro o Gin crónico, ou a Mine e a sande de couratos, mas gostos não se discutem.)
Acabado o segundo, ou o terceiro (sei lá) pequeno-almoço, decidimos regressar a casa. Mas definitivamente as forças da Natureza estavam contra nós. Assim que abandonámos a pastelaria, veio o dilúvio. A chuva era de tal forma violenta que até fazia “fumo” no chão.
Apesar de completamente ensopado e enregelado, conseguia nitidamente ouvir as sádicas gargalhadas dos deuses por cima de nós.
“É bem feito Tó-tó! Quem te mandou sair de casa? Gostas de sofrer, não gostas? Então TOMA! E não te queixes, senão há-de ser bem pior!”
Que ofensa tão grave lhes teríamos nós feito?
Nem Noé vira alguma vez uma carga de água como aquela!
Porque “barco parado não faz viagem” decidimos sair de baixo dos toldos onde nos tínhamos abrigado, e fazer-nos ao caminho.
Devagar, para não sujarmos os automóveis com a água lamacenta que espirrava por onde passávamos, lá fomos em filinha pirilau até à “subida das vacas” sempre com o líquido (que dizem ser destilado, mas que ao contrário dos outros destilados que conhecemos não aquece), a cair a baldes por cima, pelos lados, por baixo…, o diabo!
Caramba, que aquilo até doía!
Ainda sob o efeito da “pedra” (acho eu), oiço o Best à minha frente a cantar:
Moro,
Num paízz tropicau,
Abençoado por Deuzzzzz,
E boniiiiiiito por naturezaaaaaah….
Seria mesmo o Best? Seria aquilo o tão apregoado cantar das sereias? Ou era simplesmente eu que estava a delirar?
Será que a culpada teria sido da última “Boémia” (eventualmente demasiado “fina” para ser misturada com tremoços), ou do Chamon fumado há 20 anos que estava tão estragado que só agora fazia efeito?
Por outro lado, também poderia ser o resultado do contágio desta nova doença que ataca os galináceos, transmitida por uma qualquer gaivota que arreliada com a intempérie e desejosa de se vingar em alguém, tivesse defecado em cima de mim, pegando-me o malfadado vírus e pondo-me a ouvir vozes…
Definitivamente, este foi um passeio para não esquecer tão depressa. Pelas melhores razões, claro! Ou não estivesse eu na companhia dos melhores amigos que alguém pode desejar ter.
Ai Tó, ai Filipe… nem sabem o que perderam.
Para a semana há mais. Com ou sem dilúvio. Mas com croissants com creme de ovo, seguramente!
Bicho-do-Mato
(com muito orgulho, sim Senhor.)