[Crónica] Travessia do Dragão (versão integral 2008)

lobo solitario

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Travessia do Dragão (Melgaço-Bragança, de 7 a 10 de Junho de 2008)

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Prefácio
A ideia de uma Travessia das montanhas do Norte de Portugal nasceu no início da década após experimentar a Travessia de Portugal da Ciclonatur. “Se eles fazem uma, nós também conseguimos”, pensámos. Após algumas explorações e utilização de trajectos já desbravados em passeios “circulares”, o Zé (a.k.a. JAP ou, nestas páginas, NOX) e eu montámos uma Travessia que testámos em 2004, acompanhados por mais 3 elementos que encheram de colorido a “passeata”. Embora a ideia fosse partir de Melgaço e chegar a Bragança, dessa vez apenas se fez a ligação de Lamas de Mouro (já no cimo da Peneda) a Chaves. Para isso gastámos 3 dias na altura da Páscoa e um excelente relato do evento pode ser lido na página do Pedro “Indy”. Em 2005 voltei a fazer nova incursão, de Melgaço a Chaves, acompanhado por dois moços de Lisboa. Gastámos 4 dias mas o tempo, nessa Páscoa, não ajudou. Muita chuva e frio fizeram esmorecer o entusiasmo das almas mouras. A última etapa, de pisos amolecidos pela chuva, foi demasiado penosa para os dois, de tal modo que nos primeiros quilómetros optaram por um suave desvio por estrada. O empeno deve ter sido tão grande que nunca se dignaram agradecer ao seu anfitrião os 4 dias de viagem incluindo transporte e dormida na véspera!
Assim, este ano, com grande entusiasmo do Zé (que tem tido pouca actividade de BTT), resolvemos fazer a Verdadeira Travessia (“the ultimate collection”, como diriam os anglo-saxões, de trilhos duros e fantásticos): Melgaço-Bragança em 4 dias, aproveitando um fim-de-semana mais uma ponte com o feriado do dia de Camões.
Os preparativos incluem pormenores importantes: a organização dos transportes para o ponto da partida e de regresso do ponto de chegada, a marcação de dormidas e, finalmente, a carga a transportar, dado fazermos a Travessia em autonomia. A família ajudou com os transportes. O irmão do Zé acompanhou-nos a Melgaço para trazer o automóvel de regresso e a minha esposa foi convencida a ir ter connosco a Chaves e, no dia seguinte, a Bragança. Como consegui convencê-la permanecerá um mistério para sempre...
Quanto à carga, o nosso lema foi sempre, um Camel-Back com água e ferramentas e uma escova de dentes. Curiosamente, o Zé esqueceu-se mesmo foi da escova de dentes! Autonomia minimalista.
Deste modo, sexta-feira ao fim da tarde estávamos prontos a pernoitar em Melgaço, com tudo a postos, incluindo uma previsão metereológica favorável e um dia de luz bastante longo dada a proximidade do solstício de Verão. A pensão era surrealista, com um hall cheio de plantas, um “dono” com um carrão “tunnado” à porta e uns quartos estranhos: o meu tinha uma cama de casal, uma de solteiro, retrete, bidé e lavatório, tudo num espaço diminuto. Dormi mal. Se foi dos excessos alimentares (picanha em abundância no restaurante contíguo à pensão) ou do nervoso miudinho, não sei.

1ª etapa (Melgaço-Campo do Gerês): Peneda “on-the-rocks” e o martírio de Germil

Saindo de Melgaço, o asfalto leva-nos os primeiros quilómetros serra acima, permitindo despedirmo-nos desta vila situada apenas a 50 m acima do nível do mar.
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Entrámos, depois, na terra e subimos aos zig-zags, rumando ao primeiro pico da Travessia: o Cabeço do Pito.
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Uma névoa escorria de um dos vales voltado a Norte
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sem, no entanto, interceptar o nosso trilho.
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Tal como a grande parte das nossas serras, também esta zona da Peneda começa a estar decorada com torres eólicas e tem os seus caminhos “melhorados” para lhes acederem com a maquinaria.
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Com o trajecto alisado, rapidamente chegámos a Lamas de Mouro, utilizando, no final, umas trialeiras no meio do bosque
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e, logo a seguir, Porto Ribeiro onde comemos um segundo pequeno-almoço. Sai-se, então, para a penedia da Peneda, inicialmente em asfalto
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e, depois, em estradões, agora alisados por mais campanhas de “eolização” serrana. Só mesmo lá no cimo ermo é que os caminhos se mantêm intocados. A primavera húmida tinha alimentado uma profusão de plantas que combinavam as suas cores como só o bom-gosto da Mãe Natureza consegue fazer: urze, carqueja e torga.
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Para quem já fez estes caminhos, vem-lhe com certeza à memória os caminhos com muita pedra solta. Nas zonas mais difíceis decidimos poupar forças, avançando a pé uma dezena de metros, aqui e ali. Mesmo os tractores avançam lenta e cuidadosamente nestes caminhos.
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Chegados a uma marcação (mariola) no caminho
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sabia que nos esperava a primeira das descidas tenebrosas desta Travessia. O corpo é sacudido palmo a palmo, numa descida que dura quilómetros. Para mim, no entanto, é um desafio (ou mesmo brincadeira) que me deixa eufórico. Lá em baixo, quando acaba, a minha personalidade fica mesmo abalada, tornando-me mais efusivo que de costume. Deve ser do efeito destrutivo das vibrações sobre as minhas sinapses inibitórias…
As brandas, vistas do caminho, apresentam sinais de degradação avançada, sugerindo o seu abandono pelos pastores. Pena que as não conservem para as gerações vindouras, como testemunho de quão difícil a vida em Portugal já foi...
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No Mezio, junto à sua anta,
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reencontrámos a estrada e foi pelo asfalto que fizemos a maior parte do caminho até ao Soajo. Aí, como era cedo, entrámos no restaurante “o espigueiro” e fizemos servirem-nos uma posta de vitela assada preparada de modo divinal. Sei que os nossos companheiros de 2004 estarão, neste momento, a acenar reprovadoramente e a pensar “a que ponto o espírito desta Travessia chegou”. A estratégia não foi a mais brilhante pois ainda tínhamos muito quilómetros e seriam mais penosos com a pança cheia... No restaurante, um grupo de ruidosos lisboetas projectavam as suas vozes afectadas de modo a fazerem-se ouvir nas brandas que tínhamos deixado para trás. Tal era a cacofonia que eu não conseguia ouvir o que o Zé me dizia. Após abandonar o local de “reforço alimentar”, ainda fomos registar os espigueiros do Soajo.
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A segunda metade do dia consistia na subida a Paradamonte e, a partir daqui, fora de estrada, dominar uma série impiedosa de rampas dos mais diversos tipos: caminhos de floresta, calçadas graníticas polidas pelos séculos, caminhos esfarelados e inclinadíssimos.
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Registei, então, o meu primeiro ponto de quebra, desistindo do brio de tentar fazer algumas dessas rampas. O Zé refrescava-se e preparava-se para continuar a luta de titãs contra as rampas.
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Descemos ligeiramente, com a visão do rio Lima, em pano de fundo,
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até ao início de um single-track que tinha deliciado o Indy em 2004. A última vez que eu lá passara estava em grande parte ocupado pelas giestas. Fiquei agradavelmente surpreendido ao vê-lo limpo, permitindo-me fazê-lo na sua totalidade sem incómodos vegetais. No final, o trajecto segue no carvalhal
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e acaba sobre a ponte que atravessa o rio de Froufe .
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Começa, então a maior subida do dia. Inicialmente sobe-se até à aldeia de Lourido, logo acima do ribeiro, entrando-se no monte por caminhos inclinados que nos levam à estrada que sobe até Germil. A subida em estrada não deveria representar problemas mas, dada a sua extensão, mói o corpo e a alma. É desta maneira que, ao Km 85, com 2500m de acumulado se vê o que se tem pela frente:
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Pouca ajuda nos dá olhar para o que já estava feito e deixado para trás.
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Em Germil bebi uma coca-cola, algo que muito raramente faço. O corpo pede líquidos doces, a boca já enjoada da água do alforge. Faltava ainda subir à cumeada e chegar a Brufe. Até ao final da etapa foi tudo feito em asfalto, não tendo nós qualquer vontade de experimentar as trialeiras de Cutelo. A descida para a barragem de Vilarinho das Furnas foi feita a pedalar vigorosamente para vencer o vento intenso que soprava vale acima.
Atravessado o Homem, chegamos, então, a Campo do Gerês com uns mágicos 104 Km nas pernas e 3100m de acumulado. A Albergaria Stop providenciou abrigo para a noite e um jantar de robalo grelhado que mal consegui comer, tal a intoxicação endorfínica do dia. A má alimentação dessa noite iria ter consequências no dia seguinte.
Da TV da sala ao lado saíam os urros do comentador desportivo em serviço ao Portugal-Turquia. Nem o Zé se entusiasmou com os ruídos sugestivos de golo que de lá se davam a conhecer, tal o grau de empeno atingido.

2ª etapa (Campo do Gerês- Salto): “Apenas” 4 subidas

Ainda cansados do dia anterior mas com a perspectiva de um dia mais fácil, arrancámos pelas 9h00 de Campo, cruzámos a Via Nova (Geira romana que ligava Bracara Augusta a Astorga) e começamos a subir a estrada para a Calcedónia.
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No cimo, ouvi “plim”, um ruído metálico que saíu da máquina do Zé. Uma rápida inspecção da sua parte não detectou qualquer anomalia. Mas olhando bem, apercebi-me da falta de uma raio na sua Cross-Max traseira. Altura para o Zé exercer as artes de mecânico e a roda ficou sem empeno aparente. Nos quilómetros seguintes, ele iria fazer-se levezinho para poupar a roda. Creio que não durou muito... Mais à frente já ele se atirava pelos caminhos pedregosos sem qualquer tino.
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Descemos para as Caldas do Gerês e, sem parar, subimos para a Pedra Bela, cheia de turistas domingueiros (um até nos lançou “isso é que é espírito…” de dentro da sua viatura), tirámos a foto da praxe (a barragem da Caniçada vista do miradouro velho),
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seguindo, depois, para a ponte do Arado
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e, daí, para Fafião, por uns caminhos florestais interessantes.
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Antes, tivemos que descer ao vale do rio Toco, que corre ladeado por freixos e amieiros.
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Depois de Fafião toma-se um estradão até à barragem de Salamonde e sobe-se, em estrada, até à aldeia. Aí abancámos para comer e foi então que tive a quebra do dia. Depois das sandes comidas, sem me apetecer continuar a Travessia, dei por mim quase a dormir sentado. Acordado pelo Zé, divertido com a minha triste figura, pensei com horror nas subidas que se seguiriam. A subida à Vaca (o monte que se interpõe entre Salamonde e a Cabreira) era dura de roer. No meu estado, não aceitei negociar alguns dos troços mais técnicos. Tinha a consciência tranquila de o ter feito uns tempos antes, também na companhia do Zé. Pensei, no entanto, que me apetecia atalhar a Cabreira sem subir ao Talefe. Curiosamente, a meio dessa subida, uma fatia de bolo que tinha trazido de casa deu-me um inesperado alento e, com um gozo sofrido, fiz as honras às pedregosas trialeiras que sobem até ao cimo.
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A descida até ao Salto foi igualmente feita a saborear a paisagem,
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sabendo que estavam as dificuldades todas arrumadas por mais um dia. Próximo de Salto, uma cruz demonstra a miscigenação cultural e religiosa do nosso povo.
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À chegada à pensão Borda d’Água da D. Maria, por volta das 17h30, contabilizávamos 63 Km com 2100m de acumulado.
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O jantar consistiu no clássico Sopa do dia+Posta Mirandesa com as batatas especiais+ tinto de Santa Marta e sobremesa. A D. Maria andava a passar uns tempos difíceis com a criadagem: “Só querem beber!” queixava-se ela. O problema do brasileiro era, talvez, o mais evidente. Edilson trabalhava no Salto (não me recordo o ramo de actividade mas não deveria ser ligado às novas tecnologias). Tinha frequentado o restaurante para comer e deixado um calote de 600 euros. “Assim não pode ser” disse-lhe a D. Maria. “Se quiseres, ajudas-me nalgumas tarefas como despejar o lixo…” continuou. Aparentemente, tal situação não deve ter resultado muito bem. Quando entrámos na sala de jantar, o Edilson tinha colocado um enorme balde de lixo ao meio, sem avançar para qualquer lado. Olhava, aluado, em volta, com certeza a procurar uma garrafita. Segundos depois ouve-se a D. Maria “Edilson, que estás a fazer atrás do balcão? Sai já daí! Se não fazes nada mais vale ires embora”. O Edilson continua a circular sem destino pelo restaurante indo acabar por se sentar à mesa com o cozinheiro. “Come mais carne” ouço o último dizer atrás de mim. Presumo que a actividade do Edilson estava centrada, não na carne, mas na caneca de tinto que, essa sim, tinha conseguido encher e tratar a contento dos dois. Ainda vi o Edilson carregar dois garrafões de uma saleta para outra antes de ser interrompido pela D. Maria “Edilson, que estás a fazer? Se não queres trabalhar, sai-me daqui!”. Por altura da sobremesa, a D. Maria fumegava e queixava-se-nos: “Está tudo bêbado” disse, referindo-se à clientela da sala ao lado, o café. Ouvia-se uma música pimba acompanhada por urros pseudo-melódicos da clientela. Era meia-noite e ainda não conseguia dormir com a cantoria no andar de baixo…

3ª etapa (Salto-Chaves): o Barroso e as suas “tenebrosas”

Apesar da noite de sono não ter sido perfeita (culpo mais a posta que a cantoria), eram 9h30 e arrancávamos para a terceira etapa, a menina dos olhos do Zé. De facto, foi ele que a imaginou, desenhou e, comigo, a explorou. Resultou na mais bonita etapa da Travessia. Não se deve às suas artes mas, sim, às paisagens e gentes do Barroso. É quase toda feita fora de estrada, contrastando, assim, com as etapas prévias.
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Procura todos os trilhos mais escondidos e inclui as famosas tenebrosas.
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Saliento a descida em calhau para o vale abaixo de Coimbró. Dura para os punhos, exigente para o equilíbrio, não aconselhável a quem não tem experiência de pedalar em cima de um campo cheio de bolas de bilhar…
A segunda trialeira (de Telhado) estava demasiado fechada com torga, a qual libertava uma nuvem de pólen assim que por ela roçávamos o corpo e máquina. Um maná de alergénios…
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Seguiu-se a subida à torre de vigia da Armada.
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Tal como em 2004, não foi opção subir por estrada e descer a trialeira. Não! Sobe-se a encosta a direito, pelos caminhos ou, na falta deles, pelo que se parece um caminho e, ofegando como um cão, atinge-se um single-track que, esse sim, vai dar ao estradão próximo do topo. Lá do cimo avista-se a barragem de Pisões ou do Alto Rabagão.
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Só depois se regressa a descer por estrada, para desenjoar… E regressa-se a descer até Alturas do Barroso. Aqueles que nos acompanharam em 2004 devem, aqui, interromper a leitura e saltar dois ou três parágrafos. Sim, em 2004, parámos na tasca a comer as sandes que trazíamos e houve um elemento que solicitou a feitura da sande que ele próprio não tinha confeccionado. Tal facto fez com que iniciasse a sua ingestão no exacto momento em que todos os outros a tinham acabado. Essa pessoa, que não vou identificar para não envergonhar ninguém, foi severamente admoestada pelo Zé. Desse episódio ainda hoje se lembra pois, ressentido, o cita frequentemente. Mas voltemos ao presente: como era ainda meio-dia ou pouco mais tarde, a dita tasca estava fechada. Por outro lado, preguiçosos e displicentes, não tínhamos preparado nada na manhã. Assim, esperámos sentados nos bancos de pedra da praça, a chegada do moço que nos iria atender: “Sandes, não tenho. Não tenho pão. Só se forem aqueles sacos de batatas fritas e Doritos!”. Miséria, fome era o que nos esperava. “Podem tentar naquele restaurante, a casa ali com as portas castanhas. Eles cozinham, mas é por encomenda”. Pragmático, avancei e espreitei. O dono lá explicou que só por encomenda. “Mas umas sandes ou uma sopita…?” interroguei-o humildemente. “Não sei. É melhor perguntar à minha senhora.”. “Bom dia com está?”, perguntei amavelmente, “Muito obrigada! E o senhor?”. “Bem obrigado”, respondi dando-lhe a entender as minhas preocupações. “Sim senhor. Podem arranjar-se umas alheiras…”. “Apareçam daqui a uns 10 minutos.”. Aguardámos. Chega o filho do casal na sua pick-up Navara. “Bom dia” diz simpaticamente. Meia hora depois fazem-nos entrar: “Vamos, então, servir umas alheiras”, diz o filho, enquanto dispõe um cesto de pão e um prato com fatias de um delicioso presunto e de um gordo salpicão. “Bebem um vinhinho?” pergunta sem nos dar qualquer hipótese de recusa. Ataco vorazmente o presunto e o pão e sirvo-me do tinto. “Excelente”, penso. Chega a travessa de alheiras, ovo estrelado, feijão verde e batata frita. Enchemos a barriga e rimo-nos, pensando na alteração de atitude vis-a-vis a Travessia de 2004. “Aahhh, eles deveriam ver isto. Até nos batiam!”. Pedi um cartão, pois acho que voltarei ao Fumeiro de Alturas do Barroso para comer um cabritinho se for Verão ou a especialide de Inverno, cozido à portuguesa. Nem que seja pela simpatia das gentes barrosãs.
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Claro que a continuação se iria revelar difícil… Fazem-se uns caminhos rurais, encontra-se com dificuldade um single-track cada vez mais tapado com vegetação e vamos desaguar junto a Vilarinho de Negrões. Junto à estrada, uma família brinca junto a um tractor e suas alfaias. Saem três ou quatro cães atrás de nós, um deles do tamanho de um vitelo. Continua a ladrar (inofensivamente, desejo eu) e a correr atrás da bicicleta. Só parou quando um miúdo da sua altura o olhou nos olhos e lhe ralhou: “c***** que tá f#%@£§”.
Continuámos, agora a subir, para os bosques que nos separam de Carvalhais. Tivemos que adaptar o trajecto pois alguns dos caminhos tinham-se fechado. Depois de Carvalhais passa-se, primeiro, por boeque de pinheiros e, depois, por uma zona mais deflorestada que desemboca no vale do rio Beça.
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A partir daqui começa a subida para o Leiranco, a grande subida do dia. Mantenho uma respeitosa distância de 50 m entre mim e o Zé, que segue na frente. Há que respeitar a tradição. Ele é que costuma dar cartas nesta subida. Lá no cimo, uns minutos de distensão muscular aliviam as dores da coluna a ambos. Fazemos a descida, uma tenebrosa dura de roer pois é longa e deixa marcas dolorosas nos punhos. É claro que não é aqui que acaba o dia de BTT. Não senhor. Trilhos e mais trilhos a fazer até quase ao centro de Chaves.
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Enquanto eu me dirijo ao Hotel Forte São Francisco (contrapartida exigida para que a minha esposa a mim se juntasse),
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o Zé dirige-se à Albergaria Jaime. Jantámos todos num pequeno restaurante no centro medieval. Rancho foi a única opção de incluir massa na refeição. “Sim mas muita massa” disse à dona. “Aahh, eu gosto é do resto” respondeu ela. Um passeio pelas ruas de Chaves levou-nos a passar em frente da loja do Sr. Maximino Vilanova e a dar conta de mercadorias interessantes:
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O dia tinha sido reparador. Apenas 73 Km com 1900m de acumulado. Brincadeira de crianças!

4ª etapa (Chaves-Bragança): Os Vales e os Rios de Trás-os-Montes

Partimos de Chaves por volta das 9h00 deixando o Tâmega fotografado atrás de um dos marcos miliários no meio da ponte e de um JAP comportando-se como um adulto responsável e sisudo.
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A manhã estava linda mas sabíamos que havia previsões de chuva. Esta etapa era bem nossa conhecida no seu primeiro terço, tinha sido explorada há uns anos atrás no seu terço final e tinha sido desenhado no computador no seu terço médio. Havia, pois, muitas incertezas quanto a trajectos, quilometragem, total de subidas, pisos, etc, etc.
Depois de atravessar a veiga de Chaves, subimos em Nantes para apanhar a cota média do planalto. O corpo já pedia descanso mas, lentamente, foi aquecendo. O início do percurso foi feito na direcção Nordeste. O planalto transmontano é atravessado por numerosos rios que correm a juntar-se ao Douro ou aos seus afluentes mais volumosos. Assim, sendo os seus vales dirigidos essencialmente de Norte para Sul e o nosso objectivo localizado a Leste, nada havia a fazer que cruzar vale após vale até chegarmos a Bragança. De modo a minimizar o esforço de atravessar esses vales, decidimos fazê-lo, o mais possível, a Norte onde seriam menos cavados. Talvez haja maneiras mais fáceis de atravessar este relevo mas esta foi a nossa opção.
Despedimo-nos, então, de Chaves,
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passámos pelo castelo de Monforte que vigia o seu vale,
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e fomos visitar a pedra bolideira, calhau imenso que se equilibra de modo a um simples mortal a poder fazer balouçar.
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O ar cheirava à giesta em flor que ladeava os caminhos. Breve troca de opiniões sobre a escolha do melhor trajecto e apontámos para o primeiro vale: a confluência dos rios Mousse e Mente, num local de piqueniques chamado S. Gonçalo, no meio da serra do Brunheiro. Chegámos lá pelo lombo do monte
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e descemos um interminável estradão que lá vai dar, ladeado por densa mata de medronheiros. Ainda cá em cima vimos o que nos esperava do outro lado do vale... O Zé ainda disse que devia ser uma ilusão de óptica ao que eu respondi que ele estava a ter uma ilusão de optimismo.
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No merendeiro, uma família ocupava as mesas. As senhoras concentravam-se à beira dos potes de ferro onde cozinhavam o almoço, numa fogueira improvisada. Os machos, motards de idades variadas, regressavam de lavrar as vertentes do monte com as suas ruidosas máquinas. Excepção era o elemento mais sénior que olhava com ar senil toda aquela confusão. Um dos motards, mais junior, talvez 14, 15 anos, hipercinético, aconselhava um, ainda mais junior, nas artes de trepar aos amieiros. Alheado das manigâncias do criaturo, o pai motard entretinha-se a enfiar no rio Mousse o bebé mais recente da prole. Com tamanha confusão, comemos rapidamente e seguimos em frente. Cruzámos o Mente a vau e
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fizemos a subida até à aldeia de S. Jomil. Entrávamos em território desconhecido. A escolha de trajectos revelou-se excelente. Evitámos a estrada seguindo trilhos paralelos com bom piso. Almoçamos umas sandes em Vilar da Lomba, numa curta paragem. Convinha manter os níveis de glicemia pois o dia iria ser longo. Aproximávamo-nos do segundo vale quando a chuva começou a cair. Eram mais uns chuviscos que outra coisa e eu nem vesti o capote da chuva. Depois de Frades, entrámos nuns caminhos descendentes rápidos e chegámos à estrada e à ponte que atravessa o Rabaçal.
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Entrávamos, agora, no parque natural do Montesinho. A subida (inevitável!) foi feita em asfalto até Peleias e, aí, entrámos novamente em caminhos até Vilar de Ossos. O trajecto, feito numa floresta dominada pelo carvalho negral, entre Peleias e V. Ossos foi dos caminhos mais espantosos que já fiz. Lindíssimo, vale, só por si, a viagem a esta zona do país.
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O ar, húmido dos breves chuveiros, rescendia, agora, a esteva. O Zé confessava-se aliviado pois o cheiro da giesta era tão intenso que o começava a incomodar.
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Após V. Ossos continua-se a subir, e a subir, e a subir até Travanca. Aí, perguntámos às gentes da terra se o caudal do Tuela permitiria a sua passagem a vau mas fomos vivamente desaconselhados de o fazer. Assim, descemos em asfalto até Santa Cruz, atingindo velocidades cujo bom-senso não aconselha, e, lá em baixo, procurámos a ponte que atravessa o rio. Realmente, a escolha tinha sido boa. O caudal do Tuela era considerável e poderia ter-nos arrastado.
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Outra consequência positiva foi termos sido afastados de uma subida extremamente dolorosa, previamente explorada há anos atrás, e feito, em substituição, a subida por estrada.
Lá no cimo começavam a dominar os soutos. Nalguns, os castanheiros tinham idades muito veneráveis.
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Como a exploração deste troço tinha sido feita há bastante tempo atrás, o tempo tinha amaciado as memórias das suas dificuldades. Ingenuamente, julgava-me já liberto das maiores atrocidades. Foi, assim, com grande dôr que constatei o que faltava fazer... O trajecto levava-nos a mais um vale, o do Baceiro,
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e a uma subida malévola. O desgaste já me tornava ofegante e o arfar constante fazia-me doer o peito. Já lá mais no alto, o declive amansou mas a chuva começou a cair com intensidade, enlameando os caminhos até aí rijos e fáceis de percorrer. Além do mais, dissolvia as toneladas de excrementos animais que decoram estes caminhos rurais, levando a que todo o nosso corpo fosse borrifado com um generoso spray de coliformes fecais. Devo confessar que estes últimos quilómetros até Bragança me foram penosos. Começava a ter frio, os pisos eram difíceis de pedalar, e estava stressado pois tínhamos combinado com a minha esposa chegarmos a Bragança às 19h00 e as previsões eram, claramente, irrealistas. De facto, esta porção do trajecto foi pontuada por alguns telefonemas que demonstravam alguma impaciência em Bragança...! Foi, assim, com uma cara de sofrimento que me aproximei do automóvel estacionado, na esperança de adoçar o ralhete que nos esperava quando lá chegámos, às 20h00. Não foi dramático. Talvez o facto de haver um pneu rebentado contra o passeio à espera de ser trocado tenha relativizado as críticas possíveis.
Gostaria de apresentar a foto final de Bragança, do seu castelo, o culminar desta viagem mas, como todos sabem, o fim da festa é rapidamente desfeito pela necessidade de um regresso demorado, precedido de uma rápida ingestão de calorias (uns pastelinhos de Chaves muito bons) comidos com mãos sujas de pneu rebentado e cara salpicada de estrume de vaca.
Ficará para a memória escrita uma etapa de 118 Km, com 2900 m de acumulado de subidas, e para a memória etérea, umas paisagens fantásticas de terras remotas com os seus vales cavados e rios ainda no seu estado selvagem.
Bem haja o BTT.
 

silvioferraz

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Que pariu...deus me perdoe, mas quero ír pedalar, JÁ!!!

Este relato é desumano e um atentado a quem está longe de casa e da (bicicleta), em trabalho.
Parabens pelo excelente passeio.
Não se arranja o track gps?? POR FAVÔR!

Abraço
 

root

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

"As pessoas influenciam-nos, as vozes comovem-nos, os livros convencem-nos, os feitos entusiasmam-nos."

:clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap: :clap:

Um abraço

root
 

JorgeSantos

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Já um dos "vossos" discípulos me vem dizendo : Eles são os "Gurus" "Mestres" do BTT. E esta vossa aventura vem comprovar isso mesmo.

Parabéns pelo objectivo conseguído :!:
Espectacular relato acompanhado de belas fotos.

Parabens :wink:


My - Repara bem o que perdeste :lol:
 

poliveira.eng

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Estou... :drool:
QUE ESPETACULO!!!!!!!

Também quero ir!!!!!

Parabéns! Os meus maiores e sinceros parabéns!
 

Paranhos

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Muito, Muito bem............
50x melhor que a maior parte dos artigos (relatos) da Bike Magazine..........

Sem mais palavras....... :roll:

Paranhos
 

coelhone

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Muito á frente mesmo :shock: :shock:
Grande mestria de palavras...continuação de EXCELENTES Travessias
 

Goju

Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Sinceramente.............. espectacular..... até no nome do tópico ...
Parabéns pelo optimo trabalho....

Cpts
Nelson
 

orlemos

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

A a a até fi fi fiquei ga ga go!

Grande Major!
Isto é que é uma travessia. A Super Travessia do Dragão!

Se vou tentar fazê-la? claro que sim. Vou já marcar oito dias de férias ...

Quanto aos reforços gastronómicos depois conversámos. Com que então umas sandes...

Parabéns e obrigado pela partilha
Abraço
Orlando
 

Ferrão

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

O relato é muito bom, parece que estive mesmo lá, ao ponto de ficar cansado no final.
Bonitas palavras com uma ilustração a preceito.
Isto sim, vale a pena ver, ler e reler.
 

Ludos

Benevolent dictator for life
Staff member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

:s

Já havia flagelado a mente com o relato anterior deste "passeio", na altura e de forma inconsciente, pensei "Isto é que é! Tenho que ir lá!"
Felizmente para mim vivo em "marrakesh", e tamanha distância, aliada ao conhecimento presenciado do andamento do JAP em terras mouras na Travessia de Portugal, bem como uma lidação mais frequente com Pedro, O índio, depressa me consciencializei que tal trajecto tem que ser dividido em mais etapas. Não que eu seja um empenado :lol: mas com tamanhas iguarias e valor cultural há-que desfrutar e absorver o máximo possível.

Muito obrigado pelo relato :yeah:
 

Pedro Silveira

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Do melhor.. Digna de publicação nas melhores revistas mundiais de BTT....

Parabéns pela V/ aventura...


:clap: :clap: :clap: :clap: :clap:

Pedro Silveira
 

Myrage

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Mestre iluminai-me com essa capacidade de rodar os Pedais. :lol:

Excelente Aventura e Crónica. A melhor que já li até hoje.

MY
 

mikka_1

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Este report fez-me sentir "pequenino"!!!
:oops: :oops: :oops: :oops: :oops: :oops:

Excelentes fotos a que se juntou um texto magnifico!!!

... sem palavras!
Parabéns!!!
 

orlemos

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

É verdade...
Voltei a ler, mais uma vez, este relato…

Voltei a deliciar-me com tão notável descrição, quer quanto ao texto quer quanto às imagens.

Também é verdade que muito do que aqui se passou me é familiar, porquanto tive a honra de participar, a convite do meu particular amigo Pedro "INDY" Ribeiro, para fazer a Travessia do Dragão na companhia do Major, do JAP e do Zé “Rodas”Rodrigues , em 2004.

Depois de um relato como este, palavras para quê? Até apetece arrancar amanhã de manhã bem cedinho e sem limite de tempo para o regresso!

Um grande Bem Haja para o JAP e para o Major!

Orlando
 

indy

Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

“Vamos, então, servir umas alheiras”, diz o filho, enquanto dispõe um cesto de pão e um prato com fatias de um delicioso presunto e de um gordo salpicão. “Bebem um vinhinho?”
Como diria Bob Dylan: The times they are changing... :eish:

falta de uma raio na sua Cross-Max traseira
Isso foi castigo divino :lol: Foi por causa da conversa dele em 2004 que eu acabei por comprar umas malditas rodas dessas. Curiosamente, entre outros problemas, também parti uma vez um raio precisamente a caminho de Chaves :s

O relato está qualquer coisa de fantástico. E, no meu caso, repleto de "flashbacks" da aventura de 2004... ai ai :roll:

Além de algumas mudanças na personalidade dos intervenientes, felizmente que também houve melhorias na autonomia e capacidade de memória das máquinas fotográficas :)

P.S A D. Maria perguntou por mim? :mrgreen:
 

fg

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

Texto, imagens, "espírito".

Eis o BTT !

Obrigado por partilharem connosco e contribuirem para que este Forum "não se compare com nada".

Vou ler outra vez, com licença.
 

Pax

New Member
Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)

GRANDIOSO!!!! :shock: :shock:

Muito obrigado pela partilha!
 
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