O chamamento ecoou a meio da semana. O lorde de Ponte de Lima, 2º duque de Esposende, propunha uma cruzada partindo do seu feudo, desferindo um ataque surpresa a Esposende, onde já fora édito, e regressando rápida e sub-repticiamente por terras de Viana, a do Castelo, ao longo do rio Lima. Assolado de umas mialgias premonitórias de alguma gripe porcina, ainda me tentei a dizer “que não” em cima da hora mas, em prol da Honra e Valor, engoli uma mèzinha obtida no boticário ao fundo da rua e vesti a armadura. Um pouco atrasado, estaciono a caleche no areal que ladeia o Lethes. O bravo guerreiro já lá se encontrava, sereno, escanhoado e montando a sua nova égua Titaninha, despedidas feitas ao seu chateau.
Arrancámos suavemente por terras cristãs do Minho, passando em frente à habitação de um conhecido bruxo herege que, desta feita, não esteve disponível para participar na peleia. Alguém precisava labutar, neste país... A primeira subida levou-nos à serra da Padela, coutada privada do meu companheiro, conhecida em pormenor nas suas empinadas subidas. A descida levar-nos-ia a terras de uma Senhora desaparecida (ou seria aparecida?) tendo-me deparado, a meio, com manifestações de fé rasgadas no granito da serra.
Era altura de subir outra vez e era altura para o primeiro terço do dia. Rosário deslizando suavemente, lá se subiu com alguns cilícios vegetais pela frente, pois era necessário mortificar o corpo para elevar o espírito. Braços a escorrer sangue, lá atingimos a cumeada para mais outra mortificação: longos quilómetros a cavalgar estradões sem fim, sem vistas, sem outra vegetação que touça mirrada de eucalipto. Até o capitão desta empresa, conhecido amante dos pisos rolantes, se mostrava enfastiado e, pasme-se, bradava por pedra! Sim, até ele pedia a Benção da Pedra. Corei de orgulho, pensando que poderei ter tido algum papel nesta metamorfose, pois tinha-o desviado nalgumas ocasiões para o Caminho da Pedra. Felizmente, este cavaleiro não pertencerá àquela seita da Opus Dei-um-tombo e Nunca-mais-quero-pedra. A certa altura, efeitos da difícil navegação ou azelhice do nosso condestável, enfiámos por um pequeno paraíso ígneo. O corpo sacudiu-se por ali abaixo, saltaricando de pedra em pedra, num êxtase de redenção. Por maus caminhos se atinge o céu. Como recompensa, comunguei uma sandes de fêvera grelhada numa estalagem plebeia de nome Galo.
Aproximavamo-nos de Esponsende, sorrateiramente, pelo velho castro de S. Lourenço.
Nas escarpas sobranceiras à planície litoral, recortada de campos cultivados, avaliámos as hostis terras de Esposende, Marinhas e S. Paio de Anta. Tínhamo-nos cruzado com alguns guerreiros da zona, de olhar severo, que não nos terão reconhecido e, por isso, nos deixaram seguir sem delongas. O segundo terço do dia cumpriu-se por estas terras, num dia de festa.
Felizes por evitar mais confrontos e tendo cumprido o objectivo proposto, de reconhecimento do terreno, avançámos em direcção a Viana usando velhas ruelas que atravessavam o Neiva sobre largas pontes de pedra
e alguns caminhos de peregrinos que se encontravam invadidos pela flora e desembocavam nalgum outro mosteiro.
Mais sangue redentor e entrámos, finalmente, no caminho do Lima.
Rápidos, que o Kudorido não dava alternativa senão montar à lacaio desenfreado, sempre a cavalgar numa investida final, chegámos a terras santas do Lima ainda a torre sineira não tinha dado as sete. Era altura de completar o terceiro terço. O rosário consistiu num cone duplo de menta e limão, fresco e saboroso. Despedi-me do bravo e incansável guerreiro que ainda teria de subir ao seu castelo e ouvir das boas da sua dama. Ele que vos dê o que vós sempre bradais, o pio registo da incursão, a dos santos 104 Km. Redemptio in petra semper.